Bia Barbosa - Observatório do Direito à Comunicação 11.01.2008
“Oh dúvida cruel, é do marido ou é do outro? Será que ele é filho de tiquim? Tiquim de um, tiquim de outro?”. A frase acima, pronunciada no quadro “Investigação de Paternidade”, veiculado no programa Bronca Pesada, de Recife, tinha o objetivo de fazer rir. Mas de engraçada não tem nada. Transmitido diariamente às 7h e às 12h25 pela TV Jornal do Commercio - que alcança a maior parte dos municípios do estado de Pernambuco, do litoral ao sertão - e conduzido pelo apresentador popularmente conhecido em Pernambuco por Cardinot, recordista em audiência na programação local, o programa é alvo de uma Ação Civil Pública (ACP) contra violações de direitos humanos na mídia. Protocolada no último dia 10 de dezembro, a ACP também trata do “Papeiro da Cinderela”, apresentadopor Jeison Wallace, supostamente um programa humorístico, veiculado às 11h25, que diariamente ridiculariza os homossexuais.“O que se enxerga nos programas sob enfoque, que passam ao largo de uma legítima expressão artística, é apenas um enfoque bizarro tanto de situações do cotidiano ou dos próprios seres humanos, ali escolhidos para servirem de troça aos telespectadores (...) Sob o manto dissimulado da comédia, o que na verdade se vê é a execração pública das pessoas humildes, de suas vidas privadas, de seu sofrimento e dramas pessoais. Dessa forma, tornam a realidade cruel, injusta, sofrida ou violenta de uma população já excluída, um motivo de zombaria para os que a assistem”, diz o texto da ação, que segue: “O que se vê é uma postura constante de veiculação e propagação de idéias preconceituosas, discriminatórias e homofóbicas e que atentam claramente contra princípios constitucionais, em especial a dignidade humana”.Os promotores de Justiça Jecqueline Guilherme Aymar Elihimas e José Edivaldo da Silva, que assinam a ACP, pedem na Justiça a suspensão dos programas, uma indenização por danos morais coletivos no valor de um milhão de reais, a serem revertidos para o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Recife, e a veiculação por 60 dias de um direito de resposta às violações veiculadas. Segundo eles, a TV Jornal do Commercio vem “incansavelmente” ferindo tanto a Constituição brasileira quando a legislação infraconstitucional em vigor no país, com destaque para o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência e os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, todos ratificados pelo Brasil.Em seu Artigo 221, a Constituição Federal estabelece que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão devem atender aos princípios, entre outros, de preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas e de respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. Já o Pacto internacional sobre direitos civis e políticos afirma, em seu Artigo 26, que “todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação”. Para os promotores, ao incitar o telespectador a zombar, ridicularizar, menosprezar ou maltratar, por exemplo, uma criança cuja paternidade não foi reconhecida, uma pessoa deficiente que apresenta dificuldade de expressão ou compreensão, a emissora comete “um evidente desrespeito aos valores éticos da pessoa e da família, viola a intimidade, a honra, a vida privada e a imagem dessas pessoas”. “Exercem, assim, papel de destaque para a introjeção de preconceitos sociais de toda ordem (...) além de expor as próprias crianças, idosos e deficientes referidos nos programas a situações de humilhação deploráveis”, afirmam.O texto da ação cita uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que afirma que as liberdades públicas não são incondicionais, e por isso devem ser exercidas de maneira harmônica. O preceito da liberdade de expressão, por exemplo, não consagra o direito à incitação ao racismo. “Isto implica dizer que a liberdade de imprensa, como qualquer outro direito, há que se sujeitar aos limites constitucionais, democraticamente outorgados”, dizem. “Democracia e a própria Liberdade, sustentam-se, outrossim, em pilares de respeito e equilíbrio entre diversos direitos individuais e coletivos”. Para a promotora Jecqueline Elihimas, as emissoras ainda têm muito que amadurecer no enfoque dado aos direitos humanos, sobretudo quando o discurso da liberdade de imprensa e de expressão é colocado em jogo.Luta antigaA Ação Civil Pública que agora corre na Justiça de Pernambuco é resultado de uma representação formulada por sete organizações da sociedade civil pernambucana contra os programas do apresentador Cardinot: Auçuba, Centro de Cultura Luiz Freire, Gajop, Instituto Academia de Desenvolvimento Social, Movimento Nacional de Direitos Humanos, Rede de Resistência Solidária e Sinos - Organização para o Desenvolvimento da Comunicação Social. Há vários anos as entidades acompanham a conteúdo veiculado e, por diversas vezes, tentaram dialogar com a emissora visando uma modificação na programação. “Tentamos chegar a um acordo. Em abril de 2006, houve uma audiência pública, quando eles admitiram que havia problemas nos programas. Disseram que melhorariam, mas até outubro não fizeram nada. Foi quando entramos com a representação”, conta Ivan Moraes Filho, articulador estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos. O Ministério Público Estadual instaurou então um procedimento administrativo e, durante um ano, também buscou o diálogo com a TV Jornal do Commercio, para que a emissora se retratasse perante o público e revertesse os danos causados com a programação veiculada. Uma minuta de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) chegou a ser enviada ao canal, sem resultados.“Eles reconheceram que havia problemas e chegaram a realizar algumas mudanças, mas foi algo muito pequeno perto do que desejamos. Tínhamos a expectativa de firmar o TAC, porque sabemos que o processo judicial é lento. Mas não foi possível. As violações ainda são grandes e por isso entramos com a ação”, explicou a promotora Jecqueline Elihimas.Para Jecqueline, a ACP é resultado dessa movimentação da sociedade civil de Pernambuco em monitorar o conteúdo da programação televisiva e apresentar denúncias ao Ministério Público. “O MP já havia entrado com ações pontuais em relação à violações dos direitos das crianças e adolescentes principalmente nos meios impressos, com resultados positivos. O monitoramento da televisão é mais difícil. Por isso foi importante este acompanhamento mais constante da sociedade civil”, conta. “Apesar de ainda não termos tido um retorno do pedido de liminar, acredito que a perspectiva de julgamento é positiva. Acho possível que se obtenha êxito na ação. Em 2004, conseguimos uma decisão favorável em primeira instância que suspendeu o programa “Pernambuco Urgente”, da mesma emissora. O processo hoje está no Tribunal de Justiça”, relata.Direito de respostaPara que a condenação da emissora chegue o mais próximo possível da efetiva reparação das violações veiculadas e sirva de advertência para evitar sua repetição, a Ação Civil Pública exige que a emissora, em substituição aos dois programas, passe a veicular uma contrapropaganda, com mensagens voltadas exatamente à defesa dos direitos humanos violados. Assim como aconteceu com a ACP movida em 2005 pelo Ministério Público Federal em São Paulo contra o programa “Tardes Quentes”, do apresentador João Kleber, o direito de resposta seria produzido pelas organizações que entraram com a representação junto ao MP Estadual de Pernambuco com estrutura fornecida pela própria emissora. “A idéia é produzir programas parecidos, no formato, com os programas hoje veiculados pela emissora, para mostrar que é possível fazer um programa que utilize uma linguagem próxima do povo e que, em vez de ser preconceituoso, que seja pautado em cobranças construtivas e que denuncie as violações de direitos humanos, no lugar de cometê-las. No caso do programa humorístico, queremos produzir algo que faça rir, que seja engraçado, sem para isso precisar discriminar. Pelo contrário”, afirma Ivan Moraes Filho. “Quanto mais rápido estes telespectadores puderem receber o direito de resposta como contrapropraganda aos ensinamentos que a Requerida lhes repassou no sentido de menosprezar idosos, homossexuais, crianças, mulheres e outras pessoas vítimas da exclusão social, mais provavelmente poderão refletir e introjetar novos conceitos de respeito à diversidade e aos direitos humanos”, afirmam os promotores na ACP. “Este é um momento histórico no nosso estado, porque nunca houve uma Ação Civil Pública em Pernambuco contra violações de direitos humanos em geral cometidas pela mídia. Esses programas têm muitos processos na área de infância e juventude, mas esta ação trata da violação de outros direitos. Politicamente, é muito importante para nós”, avalia Aline Lucena, da Sinos, uma das organizações que entrou com a representação junto ao Ministério Público. “Se conseguirmos o direito de resposta, será fantástico, mas o simples fato da ACP existir é fundamental para a sensibilização e início efetivo de controle social da sociedade civil pernambucana frente a esse tipo de programa”, acredita.Como os programas também são recordistas em anúncios, as ONGs devem agora procurar as agências de publicidade e anunciantes dos programas para informá-los que há uma ação do Ministério Público contra a emissora. Outro trabalho visa a uma aproximação com o Ministério Público Federal – que recebeu a mesma representação e até agora não se manifestou sobre o assunto – e com o Poder Judiciário. “Já temos essa parceria com o MP Estadual, mas precisamos dialogar com o Federal e com o Judiciário. É um desafio para a sociedade civil organizada que luta pelo direito humano à comunicação se aproximar dos juízes, para que comecem a responder de forma positiva às denúncias apresentadas. Este ainda é um espaço impenetrável. Sabemos que a ACP é o primeiro momento de um grande caminho, cheio de desafios. Mas o processo em si já é extremamente rico”, conclui Aline Lucena.
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