CORREIO BRAZILIENSE – BRASIL
Bandeira coletivista
MST e Comissão Pastoral da Terra encampam formalmente proposta de trocar modelo de lotes individuais por uma concessão de uso para grupos de assentados. Ideia é impedir que beneficiados sejam donos das terras
Os movimentos pró-reforma agrária incluíram na pauta de prioridades para este ano o desejo de uma mudança legal para alterar o modelo de concessão de uso da terra pelos camponeses assentados pelo governo. Querem transformar a atual concessão individual feita pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em concessão coletiva dos lotes. É a mesma proposta já defendida formalmente pela Via Campesina e agora encampada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Igreja Católica (leia entrevista abaixo). "A concessão coletiva do uso da terra é o modelo ideal para a reforma agrária", defende Jaime Amorim, um dos coordenadores nacionais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
A proposta do movimento implica em mudança na atual legislação, que, apesar de proibir a revenda da concessão do lote pelo assentado, não acaba com a evasão ou a desistência, principalmente na Região Norte, onde o controle é mais frouxo e os grupos menos organizados. O modelo coletivista defendido pelos movimentos pró-reforma agrária já existe na forma dos Projetos de Desenvolvimento Sustentáveis (PDS). Hoje, os próprios camponeses reservam parte das áreas para cultivo coletivo. Mas a proporção ainda é considerada insuficiente pelos coordenadores do MST. O movimento chegou a debater a proposta no congresso de 2007, mas não houve definição prática.
A ideia do assentamento coletivista não é nova entre os movimentos pró-reforma agrária. Mas nunca tinha se transformado em bandeira de atuação política. As áreas coletivas nos assentamentos são destinadas à produção de frutas e criação de pequenos animais, por exemplo. Também há um setor misto, semicoletivo, onde parcela do lote é cultivada por várias famílias e a outra parte por um assentado. A terceira fatia do lote é a individual, onde cada família define o que plantar. "A manutenção dessa área individual atrasa a organização dos trabalhadores que mantêm a concepção individualista da reforma agrária", reclama Charles Trocate, coordenador do MST em Marabá.
Produtividade
Entre os estudiosos da reforma agrária no Brasil, a expectativa é de que, sem a mudança nos índices de produtividade das fazendas brasileiras, não há como desconcentrar a terra. Os indicadores foram estabelecidos por portaria em 1975 e os critérios para se fazer os cálculos não consideram a evolução tecnológica experimentada pelo agronegócio desde então. Mesmo sem necessidade de aprovar lei para isso no Congresso Nacional, o governo não tem força política para editar uma nova portaria sem causar grandes dificuldades entre a base governista no Congresso. "Sem alterar os índices de produtividade, não haverá terra para ser desapropriada no Brasil, o que limita o programa de reforma agrária", alerta a professora Leonilde Medeiros, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Outro crítico do programa de reforma agrária do governo é o professor Sergio Sauer. Doutor em sociologia rural pela Universidade de Brasília, ele alerta para a incapacidade do governo de desapropriar fazendas, principalmente nas regiões Sul e Sudeste, por falta de um índice de produtividade mais moderno. "O programa do governo não é de reforma agrária e sim de assentamento e de acesso a terra", critica Sauer. Ele aponta a suspensão das desapropriações de fazendas privadas e a concentração de assentamentos em terras públicas como exemplo. Na concepção do professor, o atual programa oficial não muda a atual estrutura fundiária.
Entrevista - Dom Tomás Balduíno
Para bispo, objetivo é a justiça social
Próximo de completar 87 anos, dom Tomás Balduíno é o eterno ideólogo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e referência intelectual dos movimentos pró-reforma agrária. O bispo considera superado o atual modelo de assentamento de camponeses, com a distribuição de lotes individuais para cada família. A proposta se parece com os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) defendidos pela freira americana Dorothy Stang, morta há quatro anos por pistoleiros no Pará. "A reforma agrária deve ser entendida em uma forma ampla. Não é aquela que divide o chão, mas a que inclui o posicionamento das quebradeiras de coco, dos seringueiros, dos ribeirinhos, dos quilombolas e até dos indígenas que têm um relacionamento sui generis com a terra", defende o religioso.
Por que a CPT defende um novo estágio no programa de reforma agrária do governo?
A reforma agrária deve ser entendida de uma forma ampla. Não é aquela que divide o chão, mas a que inclui o posicionamento das quebradeiras de coco, dos seringueiros, dos ribeirinhos, dos quilombolas e até dos indígenas que têm um relacionamento sui generis com a terra. Em resumo, a terra para quem dela precisa para viver, trabalhar e conviver. Esse é o objetivo social. O outro, mais ecológico, é no sentido de preservar o bioma amazônico e, ao mesmo tempo, todos os biomas do país que estão ameaçados pelo agronegócio. O atlas deste país revela que onde houve devastação é onde se implantou o agronegócio. As áreas indígenas, camponesas e quilombolas são as mais preservadas. Ao invés de estimular com subsídios, com grandes verbas o agronegócio, o governo deveria apoiar e defender as organizações populares na linha da convivência com a terra. Sobretudo com o bioma amazônico, que é o responsável pelo equilíbrio planetário, pela própria estabilidade do planeta em termos climáticos.
Para onde a reforma agrária, na sua opinião, deveria caminhar?
Nós estamos superando cada vez mais a ideia burocrática de uma reforma agrária que divide em quinhões a terra. Não é isso que é o conceito amplo de reforma agrária. Defendemos um novo estágio nesse processo. O consenso que vem vindo é na linha da soberania territorial e alimentar. Até uma reforma agrária na base da concessão territorial, em vez de cessão ou venda da terra — o que faria continuar o mesmo modelo de dividir o solo por famílias e depois pulverizar pelos herdeiros, o que pode fortalecer de novo o latifúndio.
O modelo que o senhor defende é diferente não só do que vem sendo aplicado pelo governo, mas até do que defendem alguns setores dos movimentos pró-reforma agrária…
Já houve tentativa de se consolidar e se estruturar esse novo modelo. Mas há muita resistência das bases populares. O pessoal quer o próprio chão. Mas acho que os exemplos dos povos tradicionais são os que mais realizaram a melhor convivência com a mãe terra, que são os indígenas, os negros, os quilombolas.
Não é propriedade do negro fulano ou do cacique tal ou qual, mas a terra indígena e quilobola. É isso que está influindo no novo conceito ampliado de reforma agrária. Não tem ainda uma cartilha ou um livro destrinchando esses conceito que estou falando porque ele está em formação.
Esse modelo parece com o modelo que a irmã Dorothy Stang tentava implantar no Pará quando foi morta?
Está nessa linha. Mas, sobretudo, na linha que inspira os movimentos ambientalistas que reformam o modo de ser camponês, e o que prevalece nas defesas de movimentos como o Via Campesina e outros movimentos camponeses em nível internacional.
Há uma crítica muito forte à reforma agrária, dizendo que não há qualidade de produção nos assentamentos. Existe incompatibilidade entre a concessão coletiva e a produtividade?
Não se pode dizer isso, porque não há esse modelo ainda implantado. O que há são as reservas indígenas que não visam a produção. O objetivo do modelo de reforma agrária não é o lucro, não é o capital, apesar de não excluir a produção. Vemos muitas vezes que a produção coletivista é melhor que a capitalista quando tem todos os recursos necessários para isso. A fábrica de leite do MST nada deve a qualquer organização capitalista. De certa maneira, tem melhor qualidade. Nós queremos, em primeiro lugar, a dignidade dessas populações assentadas. A estatística mostra que quem alimenta a mesa do brasileiro é o pequeno produtor.
O programa de reforma agrária já enfrenta muita resistência no parlamento, no governo, na Justiça. Um projeto coletivista não vai complicar ainda mais a implantação?
Seria se fosse o único, se fosse impositivo, se fosse ou isso, ou nada. Mas é uma proposta entre outras. Inclusive com a de conviver com a terra que é de propriedade do pequeno produtor. É uma questão de justiça social. (LR)
"Crê nos que buscam a verdade. Duvida dos que a encontram." André Gide
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