JORNAL DO BRASIL
Uma crítica federal à polícia do Estado
Secretário nacional de Segurança Pública, Ricardo Balestreri critica a política de enfrentamento utilizada pela polícia no Rio: “Quem mata um criminoso hoje mata o filho da classe média amanhã”.
Entrevista: Ricardo Brisolla Balestreri
"Um bandido não vale uma vida"
Secretário Nacional de Segurança Pública diz ao "JB" que a política de enfrentamento utilizada pelo Rio está errada. E faz duras críticas ao comportamento da classe média
Vasconcelo Quadros
O que o senhor acha da política de enfrentamento à criminalidade no Rio?
– Precisamos ver em que patamar ocorre o crime. Um deles é o crime organizado. Nesse patamar precisamos fazer o enfrentamento. É claro que o crime organizado não se converte com políticas de polícia cidadã ou de proximidade. Mas com um enfrentamento mediado todo o tempo pela inteligência, informação e conhecimento. Mesmo nesse patamar, em hipótese nenhuma, o enfrentamento pode ferir inocentes. Se o preço é ferir um inocente, esse enfrentamento está moral e tecnicamente incorreto. Não podemos trocar a vida de um inocente pela do bandido. O Estado seqüestrou a polícia da nação e a democracia precisa devolvê-la ao povo
As linhas do Pronasci são opostas ao enfrentamento. Como conciliar o papel do governo federal com a política do governo do Rio?
– O Rio passou por uma fase em que se premiava matadores, fase de muita leniência com execuções extra-judiciais, fase em que o confronto com o crime organizado valia a vida de inocentes. Agora está pagando por todos esses equívocos históricos. Para não setorizar a critica apenas aos governos, a classe média tem muita culpa, na medida em que aplaudiu políticas de eliminação. Agora temos que ajudar a educar a classe média para que ela perceba que, quando aplaude a eliminação dos pobres, isso nunca vai parar nos pobres. A política de eliminação vai acabar tomando a vida dos filhos da classe média.
É o que está contecendo, hoje, no Rio?
– Se trocar aquela tragédia com aquela criança de três anos (JoãoRoberto Soares, assassinado na semana passada dentro do carro dirigido pela mãe) e pensar que dentro do automóvel poderiam estar três jovens negros, pobres, homens e trabalhadores e tivessem sido fuzilados, provavelmente os setores formadores de opinião estariam aplaudindo e dizendo: menos três bandidos. Há muita hipocrisia. O senso comum é mau conselheiro na área de segurança pública. Não podemos fazer segurança com base em emoções. Podemos entender as emoções de uma população atemorizada, mas os operadores públicos têm de administrar com a razão. Segurança não se faz com o fígado, e sim com o cérebro.
A política de segurança do Rio está equivocada?
– É equivocada e foi pouco inteligente, porque trabalhou sempre com a perspectiva da ideologia da guerra. E nunca parou para perceber que essa ideologia leva aos trágicos índices que o Rio tem hoje e que nunca mudam. Se tivesse funcionado nos últimos 40 anos, os índices teriam sido alterados. Mas tenho de ser justo com o governo do Rio. Nos últimos dois meses temos recebido projetos que apontam para o processo de conscientização dos gestores de segurança.
Quais são os sinais?
– Projetos de controle biométrico de arma de fogo, cujo controle sempre foi um caos. As armas de fogo apreendidas hoje eram repassadas amanhã para o tráfico. Nunca se teve clareza sobre quantas armas usadas pelos policiais, quantos tiros deram. Estou recebendo um projeto revolucionário de algo que sempre marcou a história do Rio. Quando recebo um projeto para colocar todos os policiais na universidade ele é coerente com o mundo contemporâneo, que é o mundo da complexidade, onde o policial ensina a universidade e esta também ensina a polícia.
Qual é a saída?
– Temos uma proposta que está sendo bem aceita pelo governo do Rio, que é a troca das armas de guerra por armas tenicamente adequadas para uso em meio urbano. Enviamos recursos para a compra de 1.500 carabinas ponto 40, que têm poder suficiente de parada e não vai ferir quem está atrás ou atravessar parede. A lógica da guerra não vale para um país democrático. Não estamos em guerra, onde vale até matar um inocente.
Os governos estaduais investem muito em viaturas e armas. O que falta?
– Esse é o momento de investir mais em formação, em capital humano, inteligência e num leque de armamento que vai das não-letais às letais para que o policial as escolha para o tipo de ocorrência adequado,em polícia comunitária, que chamamos de política de proximidade, em operações especiais cujo objetivo seja preservar a vida. Em segurança pública sabemos cientificamente o que fazer para dar certo. O problema é conseguir remover essa maldita cultura empírica. Por que as pessoas (gestores) não conseguem olhar para as estatísticas e perceber que tudo isso é um desastre e que tem de mudar a maneira de intervir?
Qual é a dificuldade em aplicar uma política com rigor ao crime, mas com respeito ao cidadão?
– Quando chegou para nós um projeto pedindo R$ 55 milhões para a segurança do Rio, nós devolvemos e exigimos que se fizesse um projeto de malha presencial de polícia para que o Rio superasse o modelito histórico da política que entra tiroteando, sai e tudo continua na mesma. A pergunta que fizemos é: como é que a polícia do Rio ia entrar (numa favela) e ficar? O Rio teve a humildade de retomar o projeto e apresentou uma proposta com malha presencial. O Rio também nos pediu dinheiro para os caveirões. Nós respondemos que enquanto não se resolvesse esse confronto entre o uso de blindados e a população civil, que reclama, a União não vai financiar caveirões.
Na sexta-feira houve mais um confronto, com várias mortes. Como mudar esse quadro?
– Esse era o momento da grande virada da política de segurança do Rio, induzida pelo discurso firme da União. É uma pena que esses episódios se repiquem. Mas é a força da cultura de ponta. Nós só vamos repassar recursos para o que estiver dentro da nossa filosofia, mas não podemos impedir o governo do Rio em continuar fazendo as operações (de enfrentamento) porque isso seria um abuso do princípio federativo. Está na hora do Rio parar, se deburçar suas próprias práticas de segurança pública e fazer uma pergunta muito simples: adiantou alguma coisa? Se não adiantou, está na hora de mudar.
O Rio pode servir de modelo para contestar a política de enfrentamento no resto do país?
– Os equívocos não estão só no Rio. Eles estão imiscuidos na vida das polícias dos grandes conglomerados de todo o Brasil. É uma herança da ideologia da ditadura militar e que tem de ser eliminada da cultura policial. Não conseguimos isso porque depende de formação de cultura nova.
O que se pode fazer para promover essa mudança, já que tudo esbarra no princípio federativo?
– Desde 1990, a ONU vem pedindo que se normatize o uso de armas pelas polícias em meio urbano. Dezoito anos depois, com o Pronasci, o Brasil está fazendo o que a ONU pede. Nós só vamos cumprir aquilo que seja ética e tecnicamente correto e posso garanti que a médio prazo vamos ver queda nos índices de violência no Rio. O Rio não tem dinheiro suficiente para sustentar a segurança e depende do governo federal que, se parar de comprar de comprar armas de guerra para o Rio, fatalmente, a médio prazo o índice de letalidade das armas policiais no meio da cidadania e nos meios policiais vai reduzir.
O que o governo federal está fazendo pelo Rio na área de segurança pública?
– Está dando arma, educação, bolsa de R$ 400 por mês para quem ganha mal, 37 mil habitações dignas para os policiais que não têm recursos para morar bem, estudo de graça, mas que fazer isso com base em princípios técnicos e éticos. O governo federal não é mais um banco de financiamento para financiar guerra, que mata inocente e mata policiais também.
O Rio tem condições de mudar sua política?
– O Rio já está se dando conta de que a mera política de confronto não tem levado a bom resultado. O que acontece hoje é por inércia cultural. A herança maldita é a ideologia da guerra, mas está percebendo que isso não funciona.
A que então atribuir a persistência?
Eu até me pergunto se isso não é uma forma de boicote da ponta (policiais) contra novas formas inteligentes de gerir a segurança pública. Nós propomos a inteligência, substituindo a truculência, a burrice e a preguiça e todos os dias acontece uma ação destrambelhada. Será que não é o pessoal de ponta, extremamente reacionário e desinteligente resistindo as políticas inteligentes?
O senhor se refere também às milícias?
Sim. As milícias são produto do aplauso do censo comum por parte das classes formadoras de opinião, como foi aos esquadrões da morte e aos justiceiros. Todos eles começam dizendo que vão ajudar e terminam se corrompendo de todas as formas.
O que a sociedade pode fazer?
Está na hora da classe média do Rio deixar de aplaudir a eliminação. O sujeito que é aplaudido matando um criminoso hoje vai matar o filho da classe média amanhã.
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