A usina de Itaipu não existiria se não fosse pela capacidade do Brasil para contratar os financiamentos que permitiram a obra. Sem as águas que fazem parte do patrimônio paraguaio também não haveria hidrelétrica. O Brasil resolveu velhas disputas de fronteira com a usina, e se beneficiou enormemente da geração barata de energia proporcionada por ela. O que mais pesou, porém, para o acordo firmado na semana passada entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Lugo sobre o uso da energia de Itaipu foi o raciocínio político. Nada a ver com águas passadas.
Existem ponderações técnicas e econômicas contrárias e em favor do acordo. Em contrário, está o custo que representará para o Brasil o aumento do preço da energia
vendida ao mercado brasileiro pelo Paraguai, vizinho que sempre se beneficiou com a renda de uma usina que não lhe custou nada e foi construída sem riscos para o país. Esse argumento, levado ao extremo, obrigaria os brasileiros a torcer pela eterna miséria do Paraguai.
Afinal, como os paraguaios têm direito à metade da energia da usina e só vendem ao Brasil o que lhes sobra, o desenvolvimento do Paraguai levaria o país a absorver parcela cada vez maior da geração da hidrelétrica, forçando o mercado brasileiro a apelar para fontes de energia mais caras. A torcida pelo subdesenvolvimento paraguaio pode ter seus organizadores, mas não ajuda as autoridades policiais e de imigração do Brasil, ocupadas com problemas importados da vizinhança.
Quem defende maior liberdade e preço ao Paraguai na venda da energia lembra que os produtores de petróleo não são questionados em seu direito de cobrar o máximo
por seus recursos naturais, ainda que investimentos em pesquisa e exploração tenham
sido de empresas privadas. Os países entram "só" com o petróleo e cobram caro por
ele.
A receita de Itaipu garante ao governo paraguaio o ingresso de cerca de US$ 900
milhões anuais nos cálculos da própria hidrelétrica - quase 13% do orçamento anual
do país, duas vezes e meia os gastos de investimentos do orçamento de 2009 e sete
vezes os custos estimados do programa local de transferência de renda a famílias em
extrema pobreza.
A tradição paraguaia no uso das receitas de Itaipu não é da melhores. A debilidade de
gestão e o instável quadro político do país levantam dúvidas sobre a capacidade do
governo Lugo para aplicar os ganhos com a usina. As primeiras manifestações críticas
sobre o acordo, no próprio Paraguai, mostravam preocupação sobre o uso do dinheiro
que irá para a administração Fernando Lugo.
Seja bem gasta ou não a receita de Itaipu, qualquer governo que preveja o crescimento no Paraguai terá de buscar alternativas ao uso de pelo menos parte da energia de Itaipu hoje comprada do país. Evidentemente, terá, também, de negociar prazos para quaisquer mudanças futuras - como parece ser o caso no acordo firmado em termos genéricos por Lula e Lugo, que, aliás, poderá ser destrinchado no Congresso.
Essas negociações terão pela frente a chamada linha dura do governo Lugo: o ministro de Relações Exteriores, Héctor Lacognata, o vice-ministro, Jorge Lara Castro, e o engenheiro Ricardo Canese, dirigente do Movimento Popular Tekojoja, de esquerda, um dos principais negociadores de Itaipu. Posto à margem, há um personagem interessante, o presidente paraguaio de Itaipu, o ex-senador do partido Liberal e expresidente do Congresso paraguaio, Mateo Balmelli.
Técnico com ambições políticas, Balmelli foi quem primeiro apontou para o caminho seguido nas discussões dos dois governos, e que, na prática, trocou a reivindicação inatingível de venda da energia paraguaia de Itaipu a terceiros países, e pôs, em seu lugar, a ideia de vender essa energia no mercado livre brasileiro e reajustar uma parcela da tarifa paga pela Eletrobrás aos paraguaios. Balmelli diz que a venda da energia de Itaipu pelo Paraguai no mercado livre do Brasil abre portas para a integração das duas matrizes energéticas. E deve ser complementada por outra medida do acordo, a permissão da venda de energia paraguaia de outras fontes, nas mesmas condições, o que permitirá uma melhor gestão do potencial hídrico de Itaipu, defende ele.
Entusiasmado, chegou a dar o acordo por concluído quando ainda se engalfinhavam brasileiros e argentinos na mesa de negociações, da qual foi excluído. Operou paralelamente, mantendo contatos com Samek, com o assessor presidencial Marco Aurélio Garcia, com gente do gabinete de Lugo. Deve vir ao Brasil em breve para tentar convencer os parlamentares brasileiros da necessidade de aprovar a solução defendida por ele. Vale a pena ouvir o que tem a dizer. Deve contribuir para rechear o debate que vem por aí com argumentos técnicos e com a proposta de oportunidades de negócios de geração no Paraguai.
Em maio, ao encontrar com Lula, Lugo recebeu informalmente o pedido de aplacar os radicais, caso conseguisse apoio do Brasil para a venda da energia no mercado livre. O paraguaio se recusou, confiando, aparentemente, que movimentos populares e aliados no Brasil, como frei Beto, pressionariam o governo Lula por maiores concessões ao Paraguai. Estava errado, claro. Agora, fraco, Lugo arrancou vantagens, mas também cedeu, ao aceitar que os acordos passem pelo Congresso antes. E parece ter assumido o compromisso de cessar as queixas, caso se execute o acordo.
Lula explicitou seu interesse em garantir a "governabilidade" para Lugo, tirando-o do corner em que havia se metido ao sustentar a campanha à presidência na promessa de "resgatar a soberania" paraguaia sobre Itaipu. Esse objetivo político orientou as negociações e explica decisões como a de atropelar a Receita Federal ao decidir a alíquota que será cobrada dos sacoleiros que aceitarem legalizar suas operações.
O problema, para Lula e Lugo, é que o dinheiro de Itaipu não compra a governabilidade no Paraguai. E o paraguaio terá de provar, ao próprio país, que tem capacidade para fazer mais que arrancar a ajuda do companheiro mais rico, para cumprir promessa de campanha.
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