quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Uma injustiça continuada (Artigo de Flávia Piovesan)

O terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos ineditamente estabelece a criação de uma Comissão Nacional de Verdade, com a finalidade de resgatar as informações relativas ao período da repressão militar. Tal proposta tem causado elevada tensão política, culminando com a recente exoneração do general chefe do Departamento Geral de Pessoal do Exército, por ter se referido à "comissão da calúnia".

Direito à memória, à verdade e à justiça emergem com especial destaque na agenda de Direitos Humanos da América Latina. Em 2005, decisão da Corte Suprema de Justiça Argentina considerou que as leis de ponto final (lei 23.492/86) e de obediência devida (lei 23.521/87) - ambas impediam o julgamento de violações cometidas no regime repressivo de 1976 a 1983 - eram incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos, o que tem permitido o julgamento de militares por crimes praticados na repressão.

No Chile, o decreto-lei 2.191/78

- que previa anistia aos crimes perpetrados de 1973 a 1978 na era Pinochet

- também foi invalidado por decisão do sistema interamericano, por violar o direito à justiça e à verdade. No Uruguai, militares têm sido condenados criminalmente

- cite-se a decisão que condenou o ex-ditador Juan Maria Bordaberry.

Por sentença da Corte Interamericana, leis de anistia no Peru também foram invalidadas, com fundamento no dever do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de Direitos Humanos.

No Brasil, quanto à Lei de Anistia de 1979, há que se afastar a insustentável interpretação de que, em nome da conciliação nacional, esta lei seria uma lei de "duas mãos", a beneficiar torturadores e vítimas. A anistia perdoou a estas e não a aqueles; perdoou as vítimas e não os que delinquem em nome do Estado.

A jurisprudência internacional reconhece que leis de anistia violam obrigações jurídicas em Direitos Humanos.

No caso Barrios Altos versus Peru (2001), a Corte Interamericana considerou que leis de anistia perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o que constituiria uma direta afronta à Convenção Americana. As leis de anistia configurariam um ilícito internacional, e sua revogação, uma forma de reparação não pecuniária. No caso Almonacid Arellano versus Chile (2006), a mesma Corte decidiu pela invalidade do decreto-lei 2.191/78 da era Pinochet, por implicar a denegação de justiça às vítimas e por afrontar os deveres do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de Direitos Humanos.

Ao direito à justiça conjuga-se o direito à memória e à verdade, que demanda o acesso aos arquivos. A Lei 11.111/05 prevê que o acesso aos documentos públicos classificados "no mais alto grau de sigilo" poderá ser restringido por tempo indeterminado, ou até permanecer em eterno segredo, em defesa da soberania nacional. Esta lei viola os princípios constitucionais da publicidade e da transparência democrática, negando às vítimas o direito à memória, e às gerações futuras, a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas.

Assegurar o direito à memória, à verdade e à justiça é condição essencial para fortalecer o Estado de Direito, a democracia e o regime de Direitos Humanos no Brasil.

FLÁVIA PIOVESAN é procuradora do Estado de São Paulo e professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós-Graduação da PUC/SP, da PUC/PR e da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha).


Fernando Matos

"Crê nos que buscam a verdade. Duvida dos que a encontram." André Gide

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