O GLOBO 15/07/2010 QUINTA
Uma questão de justiça
FLÁVIA PIOVESAN
Após terem prisão decretada, o goleiro Bruno Fernandes e seu amigo Luiz Henrique Ferreira Romão (o Macarrão) se apresentaram à polícia no Rio. Bruno foi indiciado sob a acusação de ser o mandante do sequestro de Eliza Samudio, jovem de 25 anos e ex-amante do atleta. O seu amigo Macarrão e seu primo, menor de 17 anos, foram indiciados sob a acusação de serem os executores do crime. O primo de Bruno afirmou à polícia que a vítima teria sido morta por estrangulamento e posteriormente jogada a cães ferozes. Em outubro de 2009, Eliza - que alegava estar grávida do goleiro - já havia registrado queixa por sequestro e agressão, denunciando que o jogador a teria obrigado a tomar uma substância abortiva.
O dramático caso de Eliza Samudio é expressão emblemática da violência que acomete mulheres.
Soma-se aos casos de Eloá Pimentel, morta pelo ex-namorado em cativeiro no ABC, em outubro de 2008; da cabeleireira Maria Islaine Moraes, morta pelo ex-marido diante das câmeras, em janeiro de 2010; da advogada Mércia Nakashima, assassinada, com o corpo jogado em represa, em maio de 2010; e tantos outros. A violência contra a mulher é reflexo sobretudo de relações de poder historicamente desiguais e assimétricas entre homens e mulheres, marcadas pelo ímpeto do domínio e controle masculino. O componente cultural é fator essencial a mover esta violência.
Estudos apontam a dimensão epidêmica da violência contra a mulher. Segundo pesquisa do Movimento Nacional de Direitos Humanos, 66,3% dos acusados em homicídios contra mulheres são seus parceiros. O Mapa da Violência 2010, do Instituto Zanga-ri, revela que dez mulheres são mortas por dia no Brasil, sendo a motivação geralmente de natureza passional.
Para a ONU, a violência doméstica é a principal causa de lesões em mulheres entre 15 e 44 anos no mundo. A violência doméstica compromete 14,6% do PIB da América Latina, alcançando 10,5% do PIB nacional.
No Brasil, a problemática da violência contra a mulher foi por décadas silenciada e negligenciada, acobertada pela ideia de que as relações privadas seriam insuscetíveis de qualquer controle - afinal, "em briga entre marido e mulher, não se mete a colher".
Ao incorporar significativas reivindicações do movimento de mulheres, a Constituição de 1988 rompeu com esta visão, enunciando de forma inédita o dever do Estado de coibir a violência no âmbito das relações familiares.
Posteriormente, em 1995, o Brasil ratificou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
Reconhece a Convenção que a violência contra a mulher constitui grave violação aos direitos humanos e limita total ou parcialmente o exercício dos demais direitos. Elenca um importante catálogo de direitos a serem assegurados às mulheres, para que tenham uma vida livre de violência, tanto no âmbito público como privado. Consagra deveres aos Estados-partes, para que adotem políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.
Finalmente, em 2006, foi adotada a Lei Maria da Penha, que, em absoluta consonância com a Convenção, cria mecanismos para coibir a violência contra a mulher, estabelecendo medidas para prevenção, assistência e proteção às mulheres em situação de violência. Diversamente de 17 países da América Latina, o Brasil até 2006 não dispunha de legislação específica sobre a matéria.
Até então aplicava-se a Lei 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Criminais para tratar das infrações penais de menor potencial ofensivo, consideradas de menor gravidade, cuja pena máxima prevista em lei não fosse superior a um ano. Com isto, endossou-se a equivocada noção de que a violência contra a mulher era infração menor e não grave violação a direitos humanos, contribuindo para a naturalização e legitimação deste padrão de violência.
É neste contexto que a Lei Maria da Penha constitui conquista histórica na afirmação dos direitos humanos das mulheres, a repudiar a tolerância estatal e o tratamento discriminatório concernente à violência contra a mulher. Sua plena implementação - com a adoção de políticas públicas voltadas à prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, em todas as suas manifestações - surge como imperativo de justiça e respeito aos direitos das vítimas desta grave violação que ameaça o destino e rouba a vida de tantas mulheres brasileiras.
FLÁVIA PIOVESAN é professora de Direito da PUC/SP e procuradora do Estado de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário