Freira enfrenta ameaças de morte por apoiar sem-terra em MG
Geralda Magela da Fonseca, conhecida como "Irmã Geraldinha", vem apoiando a mobilização de dezenas de famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pela desapropriação de fazenda em Salto da Divisa (MG)
Por Maurício Hashizume
Brasília (DF) - Para algumas pessoas, o ano que começou poderia realmente ser diferente e trazer momentos mais agradáveis, como sugere o cordial cumprimento de "feliz ano novo". Geralda Magela da Fonseca, freira católica da Congregação Romana de São Domingos (CRSD) que atua no Norte de Minas Gerais mais conhecida como "Irmã Geraldinha", é uma delas.
Nos últimos três anos - e especialmente em 2009 -, a religiosa conviveu com insistentes ameaças de morte. Integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Geralda vem dando suporte a posseiros e dezenas de famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Acampamento Dom Luciano Mendes, em Salto da Divisa (MG), no Vale do Jequitinhonha.
Nascida e criada em São Domingos do Prata (MG), na região metropolitana de Belo Horizonte (MG), a freira de 47 anos, que tem 15 irmãos e exerce o cargo de vice-presidente do Grupo de Apoio e Defesa dos Direitos Humanos (GADDH) local, chegou a receber três ameaças por telefone num único dia.
"Quando me ameaçam, por trás da minha pessoa está o movimento. Eles sabem que, diminuindo a minha coragem de continuar com as lutas de conscientização e de busca da justiça para resolver a situação [de exclusão social], o movimento pode ter uma queda ou pode até desistir da caminhada", declara irmã Geraldinha, em entrevista à Repórter Brasil.
Desde 26 de agosto de 2006, ela acompanha e apoia a luta do MST pela desapropriação da Fazenda Monte Cristo, de 1,3 mil hectares, que já foi considerada improdutiva por dois laudos recentes. Sob intervenção em decorrência de irregularidades, a Fundação Tinô da Cunha se apresenta como dona da àrea. A entidade tem conexões com o atual prefeito de Salto da Divisa (MG), Ronaldo Cunha (DEM), da família Cunha Peixoto.
Irmã Geraldinha relembra as mortes de trabalhadores rurais no Massacre de Felisburgo, em 2004, e revela precoupação com a intensificação do clima de insegurança. O primeiro Boletim de Ocorrência (BO) foi registrado pela freira em novembro de 2008. No começo de 2009, ela saiu em defesa de posseiros que vivem na Fazenda Monte Cristo e também foram ameaçados.
A partir do final de julho do ano passado, as ameaças se tornaram ainda mais frequentes. Segundo ela, novos BOs foram protocolado. Descobriu-se, então, que as ocorrências feitas em Salto da Divisa (MG) não estavam sendo encaminhados para a central da polícia de Jacinto (MG). No último dia 28 de outubro, houve uma audiência preliminar com a presença de alguns acusados, que foi seguida de mais ameaças. A irmã, porém, conseguiu reunir testemunhas e promete seguir em frente para ver quem está por trás disso.
Representantes da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR) já estiveram no acampamento para verificar a situação e uma reunião da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALEMG) já foi realizada na Câmara Municial de Salto da Divisa (MG) para tratar do conflito agrário local.
A decisão mais importante sobre o caso, porém, permanece na responsabilidade do juiz Weliton Militão dos Santos, da 12ª Vara Federal Agrária de Belo Horizonte (MG). O processo nº 2006.38.00.008835-0, que trata da desapropriação da Fazenda Monte Cristo, ainda não recebeu parecer do magistrado.
"O latifúndio não deixa o desenvolvimento chegar no Vale do Jequitinhonha", afirma a religiosa da CPT. Eles não querem de jeito nenhum ceder a terra para a reforma agrária. Não aceitam que o processo de desapropriação da terra esteja caminhando", completa. Para ela, apenas a mobilização da sociedade civil pode mudar esse quadro de concentração. "O poder público pode fazer uma parte, mas o povo tem que despertar para a organização, que é a base para pressionar para que a situação seja resolvida".
Confira trechos da entrevista concedida por irmà Geraldinha à Repórter Brasil em meados de dezembro de 2009, na capital federal:
Repórter Brasil - Como está a situação atual em Salto da Divisa (MG)?
Geralda - A situação é de insegurança. No início deste mês [dezembro de 2009], uma pessoa fez ameaças dizendo que eu merecia morrer pelas coisas que eu vinha fazendo. Este trabalho de conscientização das famílias em busca dos seus direitos visa desembocar na desapropriação de terras improdutivas para reforma agrária e causa muito incômodo.
No dia que eu estava saindo de lá, o próprio sargento [da Polícia Militar] disse para que eu tomasse cuidado por que a situação depende de cuidados muitos especiais da minha parte. Tenho de evitar que ocorra qualquer "acidente", que não haja qualquer negligência da minha parte no que se refere à segurança que possa resultar na supressão da minha vida.
"Eles sabem que, diminuindo a minha coragem de lutar, o movimento pode ter uma queda" |
Mas a senhora conta com proteção policial?
Sim. Na região, estamos recebendo o acompanhamento do sargento e dos comandantes que dão cobertura quando a gente precisa. Lá no Acampamento Dom Luciano Mendes, onde eu fico uma boa parte do meu tempo, eles estão sempre fazendo a ronda, passando várias vezes ao dia. Antes disso, tivemos a proteção, por um tempo, da Polícia Civil. Os agentes [da Polícia Civil] entraram em greve e a Polícia Militar passou a fazer a guarda.
Mas, na verdade, é o movimento [no caso específico, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)] que está sendo ameaçado. Quando me ameaçam, por trás da minha pessoa está o movimento. Eles sabem que, diminuindo a minha coragem de continuar com as lutas de conscientização e de busca da justiça para resolver a situação [de exclusão social], o movimento pode ter uma queda ou pode até desistir da caminhada.
Os acampados podem desistir do acampamento e voltar para a rua em função das ameaças e do medo. São pessoas de famílias humildes, pobres, que têm dificuldades. A maioria é de analfabetos. Eles dependem de alguém. E esse alguém, neste momento, sou eu, que estou lá contribuindo para a reflexão sobre os direitos que eles têm, para que eles possam realmente conquistar aquela área por meio da reforma agrária.
Em que pé está o processo da fazenda reivindicada pelos sem-terra?
A Justiça é muito lenta no Brasil. E, sobretudo no caso desta fazenda [Monte Cristo], ela parece mais lenta ainda por causa do poder que a família latifundiária [Cunha Peixoto] tem em relação ao Judiciário. Eles têm ainda muitos defensores na área política. E o povo de lá fica, de certa forma, desprotegido.
Foi feito um primeiro laudo do Incra que atestou a improdutividade da terra. Houve a contestação dos ditos "proprietários", que encomendaram um segundo laudo. Isso foi em 2006. Este segundo laudo, que só foi concluído no início de 2009, também deu que a terra era improdutiva. Agora a questão está nas mãos do juiz federal [da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte (MG), responsável por conflitos agrários], aguardando parecer. Depois o processo será devolvido ao Incra para dar encaminhamento à desapropriação da fazenda.
Quantas famílias estão mobilizadas no Acampamento Dom Luciano?
A ocupação foi feita com quase 200 famílias [em 2006]. Hoje, com tantas ameaças e perseguições, foi instalado um clima de insegurança e muitos voltaram para a cidade. Alguns mudaram para outras cidades, preocupados com as possíveis perseguições por terem participado da ocupação. Nós estamos atualmente com 80 famílias no local. Essas 80 famílias estão resistindo com muitas dificuldades justamente por causa das ameaças.
O povo está muito preocupado. E uma das preocupações principais diz respeito à minha segurança. Eles falam que "se for para você perder a vida, a gente prefere desistir da terra". Temos trabalhado muito em cima disso: digo que "nem eu vou perder a vida e nem eles vão desistir da luta". E a luta é para vencer. Com fé em Deus e a união do povo nós vamos vencer, sim, e conquistar esta área. Esta área, na verdade, seria para essas 80 famílias, que estão há três anos e meio debaixo da lona preta. Mas há condição de assentar até mais por que existem muitos outros sem-terra sonhando também.
"A pobreza, a meu ver, está vinculada aos grandes latifúndios existentes no Vale do Jequitinhonha" |
A pobreza, a meu ver, está vinculada aos grandes latifúndios existentes naquela região. O latifúndio não deixa o desenvolvimento chegar. Eles têm grandes extensões de terra. Cerca de 90% das terras de Salto da Divisa (MG) estão na mão de duas famílias, que inclusive têm laços de parentesco.
Isso prejudica muito, pois os pobres continuam cada vez mais pobres e os ricos, cada vez mais ricos. E a maior parte das fazendas é improdutiva. Não há máquinas e o gado é pouco. Não existe um vínculo empregatício dos trabalhadores dessas fazendas. Não são empregados de carteira assinada. São justamente pessoas que passam por lá [os chamados peões de trecho, que muitas vezes acabam aliciados para o trabalho escravo]; um ou outro têm empregados com carteira assinada.
Diante disso, o desenvolvimento só vai caindo. Em vez de melhorar, só cai. Mas é uma região muito rica. As terras produzem muito bem quando se planta. No Acampamento Dom Luciano Mendes, numa pequena área de 25 hectares [da Fazenda Manga do Gustavo, próximo à Fazenda Monte Cristo], o grupo consegue produzir para uma boa parte da sustentação daquelas famílias: com horta comunitária, plantação de milho, feijão etc. Se houver investimentos, com certeza haverá uma produção substantiva que poderá ajudar a solucionar o problema da pobreza na região do Vale do Jequitinhonha.
A produção para o bem comum não faz parte do latifúndio. Se fizesse, o plantio poderia mudar toda a imagem do Vale do Jequitinhonha. Acredito que os órgãos competentes se mobilizarão para que a reforma agrária se torne realidade não só em Salto da Divisa (MG), mas em toda a região, que é chamada de Vale da Miséria. O Vale do Jequitinhonha há de se tornar o Vale da Felicidade, da Produtividade e da Solidariedade: da repartição de riquezas.
Existem outros núcleos de mobilização por terra na região?
Na cidade mesmo de Jequitinhonha (MG), um acampamento se tornou, no começo de 2009, Assentamento Franco Duarte. Eles já estão com a terra dividida para as famílias, que estão construindo suas casas. Lá, o processo está caminhando. Em Felisburgo (MG), onde houve há cinco anos um massacre de sem-terra [pistoleiros destruíram o acampamento local, mataram cinco pessoas e deixaram outros 11 feridos], o processo de desapropriação também já se deu. Eles já vão receber a terra e serão beneficiados.
Mas o que ocorreu em Felisburgo (MG) não deixa de ser, ao mesmo tempo, um sinal que nos deixa amedrontado. Trata-se de uma referência negativa e preocupante. Assim como aconteceu lá, também pode acontecer em outros lugares. Membros da Justiça nos dizem que "não tem nada, não; são ameaças bobas". Os mesmos tipos de ameaça foram feitos lá e a Justiça não deu atenção. E aí houve aquele triste massacre...
Em Rubim (MG), existe também um outro assentamento que foi criado há mais de um ano meio. Tudo isso na mesma região do Vale do Jequitinhonha. Esses grupos organizados já conseguiram suas terras. Em Almenara (MG), existe o Acampamento 16 de Abril. Eles estão lutando para adquirir a terra e o processo de desapropriação da área ainda está em andamento.
A região tem muitas fazendas improdutivas. São grandes propriedades. É preciso que o Incra tome a sua posição, faça a avaliação, e dê uma destinação para essas fazendas. Assim como são muitos os sem-terra nos núcleos urbanos passando necessidade. Com certeza, se o Incra desapropriar, haverá muita gente disposta a produzir nessas terras improdutivas.
A maior parte das pessoas que moram nas cidades da região saiu da área rural. Os fazendeiros conseguiram colocar o gado e o ser humano saiu. Foram empurrados para as cidades, sem direito a nada. E lá estão. Alguns conseguem arrumar emprego, mas quem não consegue passa necessidade.
Como será possível superar esse quadro de ameaças?
O que vai quebrar isso mesmo é a organização do povo. O poder público pode fazer uma parte, mas o povo tem que despertar para a organização, que é a base para pressionar para que a situação seja resolvida.
"O poder público pode fazer uma parte, mas o povo tem que despertar para a organização" |
Eu não sou da região. Sou de perto de Belo Horizonte (MG). Acho muito estranho quando as pessoas contam que foram vítimas dessas emboscadas no final da década de 90.
Um senhor contou outro dia que, em 1997, teve os pneus do seu carro estourados por tiros. Ele estava junto com o advogado, preparando a papelada que seria usada para entrar com um processo contra um fazendeiro, depois de ter deixado uma propriedade da região sem direito a nada.
Diante das ameaças de pistoleiros que atiraram contra seu veículo, ele acabou entregando documentos. Mesmo assim, ele conseguiu recuperar parte da papelada e insistiu na tentativa de receber seus direitos na Justiça. Desta segunda vez, as provas foram retiradas pelos mesmos pistoleiros das mãos do próprio juiz. Resultado: ele nunca mais conseguiu recuperar os documentos e não conseguiu fazer a denúncia.
Na realidade, o próprio advogado dele teve medo. Disse que era "melhor a gente deixar para lá porque podemos perder a nossa vida, pois eu também perderei a minha vida se a gente continuar com isso". Saiu da cidade por um tempo e depois voltou. Até hoje tem medo que alguém apareça uma hora e tire a vida dele. A história recente desse senhor é uma comprovação do que eles são capazes de fazer com quem simplesmente pede justiça.
Aí a gente percebe quanto é forte a questão do latifúndio. Eles não querem de jeito nenhum ceder a terra para a reforma agrária. Não aceitam que o processo de desapropriação da terra esteja caminhando, que são grandes as possibilidades de entrega da terra às pessoas humildes, para que elas conquistem a liberdade de consciência e a liberdade de produzir na sua própria terra, sem depender dos detentores do poder para sobreviver.
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