sábado, 9 de janeiro de 2010

Marcha à ré, gente?

Publicado em 09.01.2010



Juracy Andrade



Gente, eu estou no mínimo confuso. Estamos mesmo numa democracia? Ou ainda estamos sujeitos à tutela dos militares, que se exerce desde 1889 sobre os paisanos? Não estarão os militares finalmente submetidos, como todo servidor público, ao poder civil? O presidente da República é agora de fato o comandante-em-chefe das Forças Armadas? O ministro da Defesa manda alguma coisa? Crise militar parecia uma coisa tão antiquada: agitações artificiais teleguiadas de Washington e comandadas por oficiais brasileiros ex-alunos do War College (escola de golpes e torturas que os Estados Unidos ainda mantêm), que serviam para impor o que queriam os líderes militares, derrubar presidentes eleitos, como Getúlio e Jango, que ousavam defender os interesses nacionais.
Apesar de arbitrariamente punido pela ditadura, não tenho o direito de ser contra os militares. Ninguém tem. Todo país precisa de se defender e garantir a sua soberania, e isso não pode ser feito sem uma força armada competente, bem treinada. Mas essa força não tem o direito de usar as armas que a sociedade lhe confiou, através do Estado, para impor uma tutela a essa sociedade, ou pior, usar essas armas contra a sociedade. O militar é um servidor público como outro qualquer, está aí para servir à sociedade dentro da superestrutura estatal e submisso ao governo escolhido por essa sociedade. Ao menos numa democracia, em um país civilizado como o que desejamos ser, e temos esse direito.
É o mesmo, ou muito semelhante, aos da época de tutela militar o cenário e a encenação sob pretexto de inconformismo com decreto do presidente Lula que cria o Plano Nacional de Direitos Humanos, que, entre outros itens, pode questionar a impunidade de crimes hediondos, cometidos à sombra da repressão contra quem pegou em armas, mas também contra quem simplesmente não concordava com o enquadramento do Brasil como republiqueta bananeira vigiada pelos fuzileiros navais estadunidenses.
Seguinte: os chefes militares não aceitam decisão ou ordem do presidente da República, ameaçam se demitir e, se preciso, convocam aquele segmento civil que o ditador Castelo Branco, entendido no ramo, chamava com desprezo de "vivandeiras" (mulheres que acompanhavam as tropas como cozinheiras, lavadeiras e também para servir de repouso dos guerreiros). O ministro da Defesa, Nelson Jobim, que, em vez de exercer o comando político das Forças Armadas, gosta de se fantasiar de soldadinho, veste farda, bate continência para seus teoricamente comandados e entra em ordem unida
Não importa que o Brasil corra o risco de perder o conceito otimista que conquistou no cenário internacional, desde que Jobim e os comandantes que o comandam garantam a inamovibilidade de conceitos positivistas retrógrados que constituem a base da ideologia militar desde Benjamim Constant, ensinada nas academias do setor e, para uso externo, no War College.
Alguns chefes militares continuam defendendo um conceito de anistia sem base jurídica, segundo o qual quem cometeu crime de tortura e morte contra pessoas sob sua guarda, por puro sadismo ou obedecendo a ordens superiores, merece o mesmo tratamento de quem fazia oposição não consentida ao regime ou matou em combate (claro que guerrilheiros também executaram governistas).
A Lei de Anistia foi uma concessão provisória ao ditador de plantão. Havia pressa. Na Argentina, no Uruguai, no Chile tem até general preso. Quem cometeu crimes só agora descobertos também tem anistia prévia? Punição de crimes comuns e hediondos não é revanchismo. Gente, será que estamos condenados a marcha a ré de novo? Será que teremos de adiar, mais uma vez, a concretização da profecia de "país do futuro" (Stephan Zweig), esse futuro nunca virando presente?
» Juracy Andrade é jornalista
juracy@jc.com.br

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