segunda-feira, 27 de junho de 2011

Apresentar preso em flagrante ao juiz evita abusos

Apresentar preso em flagrante ao juiz evita abusos

Integrantes do Conselho Nacional de Justiça têm discutido um projeto de Proposta de Emenda Constitucional para que logo após a prisão em flagrante, os presos sejam apresentados diretamente ao juiz. Com a entrevista pessoal, e não a mera análise da cópia do auto de prisão em flagrante, especialistas dizem que a integridade do preso seria mais bem garantida.

O defensor público do estado de São Paulo, Carlos Weis, considera a proposta necessária porque cumpre o artigo 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da costa Rica) e 9.5 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que preveem que a pessoa presa seja levada o mais rápido possível à presença do juiz. Ambos documentos foram ratificados pelo Brasil.

"A entrevista física, logo após a prisão, é um compromisso jurídico assumido pelo país, e até agora o Brasil está descumprindo isso", explica. De acordo com Weis, para cumprir as normas internacionais, já reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal como supralegais, bastaria a regulamentação por ato administrativo do Conselho Nacional de Justiça. Contudo, ele admite que a PEC é um instrumento interessante nesse caso, já que a incorporação "afastaria qualquer dúvida quanto à incompatibilidade do tratado com a Constituição", que, por sua vez, só prevê que a prisão deve ser comunicada ao juiz.

Segundo o defensor público, a maior utilidade da medida é fazer do juiz um garantidor da integridade pessoal do preso e da legalidade da prisão. Isso porque evita a ocorrência de tortura e outros tipos de tratamentos desumanos, além da corrupção policial, que infelizmente acontecem no país.

O desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Geraldo Prado, explica que levar o preso à presença do juiz não é o mesmo que comunicar a prisão ao juiz. Segundo ele, a diferença está no propósito da primeira, de assegurar a integridade física e psíquica do preso, prevenindo e evitando a tortura, além de possibilitar o controle da legalidade da prisão, incrementando "a responsabilidade de todos os envolvidos com a custódia", e permitindo o imediato contato do preso com um defensor.

O desembargador observou que a Lei 12.403/2011, de 4 de maio, que institui as medidas cautelares a serem adotadas no lugar da prisão, mantém o regime da "comunicação" e não o da "apresentação".

Precedentes perigosos
Considerando que essa é uma possibilidade do preso explicar sua versão dos fatos, outro defensor público do estado de São Paulo, e professor da PUC-SP, Gustavo Junqueira questiona: "a quem interessa que o preso em flagrante não seja apresentado diretamente ao juiz?".

O defensor lembra que Honduras e Equador já foram condenados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por descumprir essa mesma questão. As decisões são baseadas nos princípios do controle judicial e da oralidade, e é considerado que a medida é essencial para a proteção dos direitos a liberdade, vida e integridade. "O simples conhecimento judicial de que uma pessoa está detida não satisfaz essa garantia." Em Tibi x Equador, o Estado foi condenado porque o cidadão foi apresentado a um "escrivão público" e não a um juiz.

A norma existe nas Constituições da Alemanha e da África do Sul. Na segunda parte do artigo 104 da Constituição alemã está expresso que o juiz, depois de ouvir o detido, deve, "sem demora, emitir ordem escrita de prisão ou ordenar a libertação do detido". No artigo 35.1 da Constituição sul-africana é dito que os presos em flagrante devem ser levados perante o juiz o mais rápido possível, em até 48 horas depois da prisão.

Prática
O juiz maranhense Douglas de Melo Martins já adota essa atitude nas comarcas em que atua, e comparou um plantão criminal em São Luís no qual praticou a entrevista, com um em que outro juiz não fez o mesmo. No primeira caso foram soltos 53,85% dos presos (21 dos 39 apresentados), e no segundo só 7,14% (2 de 28).

Ele contou o caso de um surdo-mudo preso em flagrante por tentar assaltar uma passageira de um ônibus. Apesar do flagrante estar formalmente correto, o juiz pediu uma intérprete junto ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos para entrevistá-lo. Assim, foi informado pelo surdo-mudo de que estava em meio a uma briga com sua esposa e nem percebeu o assalto. Com esse relato, ele ganhou liberdade.

Em outra situação, o dono de um pequeno mercado foi preso em flagrante por receptação porque no seu estabelecimento comercial foram localizados produtos furtados de um supermercado. Ao ser ouvido pelo juiz logo após a prisão, mostrou ter notas fiscais dos itens e foi posto em liberdade.

O juiz considera que o maior dos efeitos da apresentação do preso em flagrante é a inibição da violência policial. Nesse sentido, conta que quando atua dessa forma, não entrevista nenhum preso machucado.

Letra morta
A redação atual do Código de Processo Penal obriga a Polícia a comunicar imediatamente a prisão ao juiz, com o envio da cópia do auto de prisão em flagrante em 24 horas.

Segundo Alexis Couto de Brito, professor de Direito Penal e Processo Penal do Mackenzie, muitas vezes nem essa obrigação é cumprida. Isso porque não há plantão judiciário de 24 horas, e em muitas cidades brasileiras, caso a prisão aconteça em uma sexta feira à noite, a cópia do auto somente será enviada na segunda-feira.

Apesar de observar que do ponto de vista jurídico a medida prestigia os direitos fundamentais e o Estado democrático de Direito, ele diz que a mudança sofre um entrave material.

De acordo com Brito, para se obrigar a apresentação do preso imediatamente deve-se instituir um plantão 24 horas do Judiciário em todas as comarcas do país, pois muitas prisões são efetuadas durante a madrugada, finais de semana e feriados. "Não sei se do ponto de vista prático isto seria possível e daí a alteração poderia ser letra morta, já que apenas algumas cidades poderiam cumprir." 

No que diz respeito à viabilidade da proposta, o defensor público Carlos Weis deixa claro que "é capaz que o Poder Judiciário não esteja apto a entrevistar todos os presos imediatamente, mas isso não significa que não possa ser feito, pelo contrário. O Estado precisa se reorganizar para atender a novas obrigações".

Inutilidade defensiva
O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiro (AMB) e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Nelson Calandra, discorda da necessidade da medida. "Me parece demasiado, em pleno século 21, quando se fala em interrogatório por vídeoconferência, passar a movimentar presos para cumprir formalidade que só deve existir quando o juiz tem dúvidas, inclusive sobre a integridade do preso, após recebido a cópia do flagrante", opina.

Para Calandra, a mudança não é muito útil e vai acabar por atrasar mais ainda a instrução processual penal de maneira mais custosa e perigosa, com o transporte e escolta dos presos. Ele lembra que os presos são submetidos a exames médicos antes de serem recolhidos à prisão, e os juízes e membros do Ministério público são obrigados a fiscalizar os estabelecimentos prisionais. Além disso, os advogados sempre podem pedir o relaxamento da prisão, e se o juiz entender necessário, pode requisitar a presença do preso.

Para ele, a grande finalidade da proposta, que a prisão processual só seja decretada quando estritamente necessário, já é garantida pelo ordenamento jurídico atual, inclusive pela lei 12.403, de 4 de maio, que estipula diversas medidas cautelares a serem adotadas antes da prisão.

Calandra lembra que países que adotam a medida como Alemanha e África do Sul são infinitamente menores do que o Brasil, e têm realidades sociais e financeiras muito diferentes. "Temos que procurar resguardar os direitos dos presos sim, mas pelas formalidades já existentes na lei", expõe.

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