por Maria Inês Nassif
do Valor Economico
A Lei de Anistia é de 1979 e foi produto de uma negociação entre um governo militar e uma oposição ainda acuada pelo medo da ditadura. Imaginar que naquele momento as forças de oposição e a Justiça pudessem interpretar de outra forma a alegada anistia a torturadores seria uma ingenuidade. Não havia clima, nem liberdade para tanto. Foi a anistia que deu para ser. Passados quase 30 anos da lei, todavia, é bom que se desmistifique essa história de “anistia irrestrita” para os dois lados. Não foi assim.
A Lei 6.683, de 20/08/1979, concedeu anistia “a todos que, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos” (…). A exceção foram “os condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal”. Foram incluídos na regra os “crimes conexos”, definidos como aqueles “de qualquer natureza relacionados com os crimes políticos ou praticados por motivação política”.
Pela lenda brasileira da anistia, os “crimes conexos” foram praticados por torturadores e por agentes do Estado que atentaram contra os direitos humanos, ou em nome da guerra contra a subversão cometeram até ilegalidades em relação à ordem instituída pela ditadura militar. Não existiria qualquer possibilidade de punição dessas pessoas.
Pela lenda brasileira, os terroristas - chamados de “criminosos de sangue” no período militar - foram todos beneficiados pela lei. Isso aconteceu apenas indiretamente. Os adversários do regime que se envolveram na luta armada foram, de fato, a exceção da Lei de Anistia. Se saíram da cadeia depois da promulgação da lei foi porque foram beneficiados por reduções de pena ou por conceitos mais dilatados usados pela Justiça Militar. Prova disso é que o último preso político da leva pré-anistia, José Sales Oliveira, foi libertado em Fortaleza mais de um ano depois, em 8/10/1980. Aliás, Sales morreu devido a seqüelas das torturas a que foi submetido.
Militantes da guerrilha foram excluídos
Segundo o regime militar, os agentes públicos que cometeram excessos tinham uma motivação política, e portanto teriam cometido “crimes conexos”. O que o ministro da Justiça, Tarso Genro, e o da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, dizem quando ponderam que existe espaço para a punição de torturadores não é que a lei deve ser mudada, mas que a Justiça pode nova interpretação à velha lei. A Justiça do Brasil democrático não precisa necessariamente ter a mesma interpretação da Lei de Anistia que os militares tinham (não os atuais, mas aqueles que estavam no poder no período de 1964 a 1985). Se a Justiça interpretar que um agente do Estado, a qualquer tempo - inclusive no período da ditadura militar e lidando com presos políticos -, não comete um crime político, mas um crime comum, ao praticar a tortura, retira o torturador da regra do “crime conexo”. Em nenhum momento o agente público que cometeu atentado contra a pessoa nos porões da ditadura foi punido por opiniões políticas. Ao contrário, sua opinião política se sobrepunha, à força, no período militar.
Vai fazer história a ação movida pela família Teles, pedindo não a reparação pelo Estado das torturas sofridas, mas o simples reconhecimento de que foram vítimas de torturas, e de que determinados agentes a praticaram. Esse processo tem o poder de desmistificar a tortura: ela não foi apenas uma reação a uma ação política; ela foi cometida por agentes do Estado, que detinham o monopólio da força e excederam os limites impostos inclusive pela ordem imposta pela ditadura. Não está escrito em nenhuma lei que um agente policial ou militar poderia usar da força em interrogatórios. A ditadura tinha os atos institucionais que davam ao chefe de Estado de plantão a possibilidade de atropelar a ordem legal do país, mesmo a definida anteriormente por outros atos institucionais. Mas teoricamente essa era uma prerrogativa dos governantes, não dos agentes que atuavam nos porões das prisões e que detinham regular ou clandestinamente os adversários políticos do regime.
Pergunta-se muito, nesse debate, o que o Brasil tem a ganhar remexendo um passado incômodo e todos os seus medos. Talvez tenha a ganhar um futuro melhor. A banalização da tortura no período de exceção contaminou o país - e hoje quem paga por essa banalização são os presos negros e de baixa renda que entram no sistema prisional por uma cadeia de polícia e chegam até o presídio. A Lei 9455, que definiu os crimes de tortura, definiu-a como crime não passível de anistia e inafiançável. Ainda assim, segundo pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da USP e da Fundação Teotônio Vilela, do total de casos denunciados como tortura no Judiciário de São Paulo, a maioria deles, 68%, foram cometidas por agentes do Estado. Apenas metade dos denunciados por crimes de tortura tiveram alguma condenação. A prática da tortura não apenas é normal para um grupo determinado de agentes públicos que está nos sistemas policial e prisional, como passou a ser relativizado inclusive pela Justiça.
* Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras
maria.inesnassif@valor.com.br
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