Menos sangue na guerra
Na virada dos anos 90 para os 2000, o País- parecia derivar para o descontrole absoluto da violência, com indicadores de homicídio maiores que países em guerra. Os jovens negros com até 25 anos das periferias metropolitanas surgiam então com destaque nas estatísticas oficiais. Entre 15 e 24 anos, a média de vítimas de homicídio era de 96,8 por 100 mil habitantes em 2007, ano com indicadores oficiais mais recentes. Em Alagoas, Pernambuco e Espírito Santo, o índice ultrapassava assustadores 200 casos por 100 mil. Na média geral, eram 25,2 assassinatos.
Dois fatos relativamente novos, contudo, permitem alguma dose de otimismo. Por um lado, estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e, mais recentemente, Pernambuco e Sergipe demonstram ter reencontrado a trilha para enfrentar o problema, como indica a queda consistente das taxas de criminalidade nessas regiões. Por outro, os efeitos cumulativos do Estatuto do Desarmamento, em vigor desde 2003, e as novas práticas de gestão da segurança pública, com maior integração entre as esferas municipais, estaduais e federal, levam alguns especialistas a apostar na manutenção da tendência.
A relativa recuperação da renda das famílias mais pobres e a ampliação de empregos com carteira assinada também têm a sua parcela, ainda que seja difícil, mesmo para quem estuda o tema há anos, estabelecer um peso específico a cada uma das variáveis, conforme explica o cientista político Glaucio Soares, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj: "A queda da violência a partir de 2003 não foi generalizada, mas foi significativa no Sudeste, que até o fim da década de 90 era a região mais violenta do Brasil, com destaque para o estado de São Paulo, que virou referência internacional, assim como Nova York e Bogotá. Agora o Nordeste concentra as taxas mais elevadas, com destaque para a Bahia, que tem um peso demográfico relevante, principalmente na região metropolitana de Salvador. A capital de Alagoas, Maceió, e o Pará também. Esses estados não souberam aproveitar o estatuto". O Paraná é outro que registrou alta considerável dos índices de criminalidade nos últimos anos.
Nessas regiões mais críticas, avalia o pesquisador, a precariedade da estrutura- pública de socorro às vítimas agrava a situação. Sem atendimento adequado, aumenta o número de vítimas fatais. "O boletim de ocorrência é preenchido pela primeira autoridade policial a chegar ao local do crime, mas nem sempre é preenchido corretamente. Em geral, deixam em branco a parte que relataria o tempo de espera pelo socorro."
A ineficiência no registro não é o ponto mais grave a ser enfrentado. Bem mais complicada é a corrupção nas polícias estaduais, civis e militares, que em alguns estados inclui representantes da cúpula policial, sem falar na propina miúda das blitze e flagrantes.
No início da década de 90, o economista Daniel Cerqueira encontrava-se no centro de uma experiência que prometia virar a página da insegurança no Rio, quando foi convidado pelo então secretário Luiz Eduardo Soares (no governo de Anthony Garotinho) a compor a sua equipe. Deram todos com os burros n'água, como recorda Cerqueira, hoje pesquisador do Ipea. "Bismark dizia que o povo não devia ficar sabendo como eram feitas as salsichas, pois saí dessa experiência com a certeza de que, aqui no Brasil, o mesmo podia-se dizer da maneira como era feita a segurança pública", diz Cerqueira.
"Ficou evidente que a política de segurança não tinha critérios objetivos, era baseada em bravatas e seguia um modelo herdado do século XIX. Sem falar no grau enorme de corrupção em todas as esferas e a ausência de práticas que coibissem os desvios de conduta."
Cerqueira volta à década de 60, onde identifica um momento de virada importante no modo de estruturar a segurança no País. Até os anos 50, o poder policial era concentrado nas delegacias e nas mãos das autoridades mais graduadas, em geral formados em Direito e com salários melhores. Depois, e cada vez mais, decidiu-se por dar mais poder ao policial com atuação nas ruas.- "O problema é que deram mais poder a esses policiais, sem criar os mecanismos institucionais de controle desse poder. E até hoje esse problema não foi enfrentado, a começar pelo Rio, apesar da redução do número de homicídios mais recentemente."
O Estatuto do Desarmamento, diz Cerqueira, teve três efeitos relevantes: restringiu muito o acesso aos revólveres, encareceu o registro e porte legal e leva à cadeia quem se arrisca a burlar a lei. "Em um estudo em que procurei estabelecer as causas da redução da violência, a partir da base de dados municipais de São Paulo, onde os homicídios caíram 60% entre 2001 e 2007, verifiquei que a cada 18 armas apreendidas uma vida foi poupada. E que 1% a mais no número de armas representa um aumento de 1,5% a 2% do número de assassinatos."
Secretário-geral do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o sociólogo Renato Sérgio de Lima chama a atenção para alguns problemas estruturais, que tendem a frear uma redução mais forte da violência. "Existem variáveis sociais, econômicas e gerenciais para explicar a situação em que nos encontramos, e todas são importantes. Por exemplo, a existência de duas polícias, a Civil e a Militar, é um problema incontornável, já que muitas vezes elas não se conversam. Enfrentar o crime organizado, um problema característico da nossa época, também é importante, inclusive para reduzir a sensação de violência."
No Rio de Janeiro de Sérgio Cabral, o surgimento das Unidades Policiais Pacificadoras, as UPPs, virou um exemplo internacional, considera- -Lima, na medida em que consegue aos poucos mudar a forma como a polícia se faz presente. "A ideia de polícias comunitárias vai na direção correta, inclusive porque parte da admissão de que o modelo tradicional repressivo, quando a polícia ia à favela somente para prender, está fracassado. Com as UPPs, trabalha-se com a sensação de violência, muda o imaginário da sociedade. O problema nesse caso é saber se terá escala e será capaz de substituir o modelo anterior, o que ainda é uma questão em aberto."
Ao contrário do que aconteceu em outros estados, onde a violência migrou das regiões metropolitanas para o interior, em São Paulo, a queda dos índices de homicídio foi generalizada, como Lima destaca no livro Entre Palavras e Números: Violência, Democracia e Segurança Pública (Ateliê Editorial), a ser publicado em outubro.
Ao refletir sobre as causas dessa mudança, o sociólogo procura relacionar os vários fatores que explicam o movimento. Começa pela redução relativa da parcela da população na faixa etária mais vulnerável, aquela de 15 a 24 anos, que caiu de 19,4% do total (em 2000) para 17,6%, em 2006. E a entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento, assim como a maior participação dos municípios nas ações de segurança. Várias cidades Brasil afora decidiram restringir o horário de funcionamento de bares e a venda de bebidas alcoólicas. Os recursos municipais para enfrentar a criminalidade cresceram: de 2003 a 2007, foram repassados pelo Fundo Nacional de Segurança Pública cerca de 111,3 milhões. Em São Paulo, por exemplo, 29% das cidades contavam com uma Guarda Municipal em 2006, ante uma média nacional de 14%. O aumento da escolarização também pesou positivamente. Assim como o aumento da população carcerária, que teria tirado de circulação homicidas contumazes.
A queda da violência em São Paulo, de acordo com os especialistas, não se deve só a fatores positivos. A mudança de postura do crime organizado, detectado desde o início da década, pode explicar parte da sensação de relativa trégua. "Depois de 20 anos se matando", diz Soares, do Iesp-Uerj, "o PCC percebeu que todos ganhariam mais se houvesse menos mortes, o que não teria acontecido no Rio, onde o Comando Vermelho é o grupo hegemônico."
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