Denúncia de execução em cemitério mostra falta de controle sobre a Polícia
Todo Estado moderno pressupõe o monopólio da violência legítima. Toda democracia pressupõe controles sociais efetivos sobre o uso desse monopólio, que deve ser exercido em respeito a direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Quando falamos de segurança pública e polícias, o Estado brasileiro tem historicamente demonstrado sua incapacidade em atender a esses dois pressupostos.
Infelizmente, tivemos notíciarecente de mais um episódio que atesta essa incapacidade do Estado brasileiro em manter forças de segurança pública que façam uso legítimo da violência estatal, de acordo com os parâmetros garantidores do Estado de Direito. A execução sumária de um suspeito de crime pela Polícia Militar de São Paulo, em pleno dia, em cemitério na cidade de Ferraz de Vasconcellos, certamente soma-se a outros episódios corriqueiros semelhantes, e só teve destaque pelo inusitado da situação: arbitrariedade presenciada por testemunha civil, que imediatamente ligou para o próprio Centro de Operações da Polícia Militar (Copom, o famoso "190") e relatou a execução em tempo real, denunciando os policiais criminosos. Mais do que isso: ao ser afrontada por um dos assassinos fardados, que percebeu que a execução havia sido testemunhada, a denunciante desafiou o policial militar, cobrando-lhe explicações sobre o ocorrido.
O inusitado da situação está justamente na coragem da denunciante, que se valeu de um canal formal de comunicação de crimes mantido pela Polícia Militar para comunicar, como cidadã, o abuso e a arbitrariedade da própria Polícia Militar. E, se é triste que execuções como essa aconteçam cotidianamente e impunemente, é mais triste ainda pensar que a atitude da cidadã denunciante é exceção que, além de tudo, colocou sua própria vida em risco.
Na falta de controles institucionais efetivos que garantam a lisura e a correção da Polícia Militar, coube a um indivíduo exercitar a forma mais frágil de controle democrático: a "vigilância" cidadã de que falavam John Stuart Mill e Alexis de Tocqueville ao descreverem, em suas obras sobre a democracia moderna, as condições de funcionamento do regime democrático. A fragilidade dessa forma de controle, já evidente em sua precariedade institucional e no risco de extinção ante a apatia política dominante, torna-se ainda maior quando, para exercer essa "vigilância" sobre o poder, um cidadão se expõe diretamente ao risco de ter de enfrentar a força física do Estado, representada por um assassino fardado que atua à margem da lei.
No caso do cemitério de Ferraz de Vasconcellos, essa virtude cidadã, tão aplaudida pelos teóricos da democracia, apenas evidencia a falência de qualquer pretensão democrática para as políticas de segurança pública, e das formas institucionais de controle sobre as polícias. Por impotência, omissão ou conivência, governadores, secretários de segurança pública, comandantes de tropa e delegados-gerais têm se mostrado ausentes de suas funções de controle efetivo sobre os homens armados responsáveis pela segurança pública. Falha também o Ministério Público, que tem a função constitucional de fiscal da lei e de controle externo da polícia – e, nesse aspecto, é preciso lembrar que membros do Ministério Público estadual, muitos dos quais também ex-policiais, estenderam suas práticas punitivistas no interior da instituição para a função de Secretários de Segurança Pública que ocuparam nos últimos governos estaduais.
A postura cidadã da denunciante é, infelizmente, exceção em nossa prática democrática. A nossa dificuldade em lidar com o passado político autoritário, esclarecer os crimes praticados pelo Estado durante a ditadura e em extinguir a tortura nos aparelhos de segurança é a maior mostra disso. Para além do "grande" debate político midiático sobre Comissão da Verdade, anistia e tortura, nossa fragilidade institucional democrática na área da segurança pública afeta cotidianamente, e sem maiores alardes, a vida da população mais pobre da periferia das grandes cidades, vítima constante da arbitrariedade policial no uso da violência estatal. Não raro, policiais militares como os que executaram o suspeito de crime nesse episódio são condecorados por bravura ou mérito na realização de suas funções. Aos executados, inocentes ou não, cabe apenas comporem as estatísticas fraudulentas dos "autos de resistência" ou dos "homicídios de autoria desconhecida", que contabilizam as execuções praticadas pela polícia. Aos eventuais cidadãos que tenham coragem de enfrentar esses abusos e denunciar práticas criminosas por parte de agentes do Estado cabem, infelizmente, a reclusão e a perda de identidade em um programa de proteção a testemunhas – isso se a morte não vier antes.
Frederico de Almeida é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, professor da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e da Universidade São Judas Tadeu
Edita o blog POLÍTICA│JUSTIÇA (http://politicajustica.blogspot.com)
Nenhum comentário:
Postar um comentário