segunda-feira, 16 de março de 2009

Amazônia para dar e vender

14/03/2009

Amazônia para dar e vender

O governo planeja doar ou leiloar terras equivalentes à Alemanha e à Itália juntas. Se der certo, isso poderá acabar com a bagunça fundiária que emperra o desenvolvimento da região
Ricardo Amaral
Rickey Rogers
OS SEM-PAPÉIS
Trabalhadores rurais na Amazônia. O governo quer priorizar os pequenos agricultores com posse irregular da terra

Entre as lendas e os mistérios que sempre existiram em torno da Amazônia, há um mito que a realidade teima em confirmar: todos os projetos de ocupação racional da maior área verde do planeta começam com entusiasmo e acabam em fracasso. A floresta imensa tragou sem piedade, nos anos 1970, a estrada megalomaníaca por meio da qual os governos militares quiseram levar "homens sem terra para uma terra sem homens". Nos anos seguintes, incursões desorganizadas de madeireiros, garimpeiros, agropecuaristas e até colonos da reforma agrária produziram mais mal que bem ao meio ambiente e às populações originais da região.

Esses antecedentes justificam os temores em torno do ambicioso programa de distribuição e regularização de terras da Amazônia que o governo federal acaba de lançar. Bem conduzido, o programa Terra Legal, como foi batizado, poderá legalizar a situação de quase 300 mil famílias de pequenos produtores, estimular a economia não predatória e funcionar como instrumento poderoso de recuperação e preservação da floresta. (Sobre outra iniciativa pela Amazônia, leia a entrevista com o príncipe Charles) Mas, se ocorrer o que temem os críticos do projeto, ele poderá se transformar num fracasso estrondoso e confirmar a maldição da floresta.

Uma das consequências mais graves, porém pouco visível, de décadas de ocupação desordenada da Amazônia é a bagunça fundiária. Calcula-se que menos de 4% das terras rurais em mãos de particulares estejam regularmente registradas e livres de demandas judiciais. O restante – mais de 96% das terras – encontra-se na ilegalidade. Mesmo longe da Amazônia, ouve-se falar muito de casos de grilagem de terras – títulos de propriedade forjados com papéis falsos, como foi o caso do proprietário "fantasma" Carlos Medeiros, que tinha o registro de 12 milhões de hectares no Pará, uma área do tamanho de Cuba.

Quase não se percebe, longe da Amazônia, que cerca de 1,5 milhão de pessoas vivem e tiram seu sustento de terras abandonadas pela União. Pelo tempo de uso, a maioria poderia reivindicar a posse da terra na Justiça, se houvesse Justiça nos confins da floresta. O objetivo do Terra Legal é regularizar essas posses, num prazo de três anos, ao custo de R$ 300 milhões. As posses menores, de até 100 hectares, serão doadas aos ocupantes. As médias, até 400 hectares, serão vendidas com desconto e financiadas em até 20 anos. Acima disso, será cobrado o valor de mercado, até 1.500 hectares. O restante, até o limite de 2.500 hectares, vai a leilão.

"Não se pode fazer nenhum plano sério, nenhum projeto para o futuro da Amazônia, sem definir primeiro a questão da propriedade da terra, quem é dono de quê", diz o ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger. Foi dele a iniciativa de levantar a situação fundiária, discutir o problema com os governadores dos nove Estados da Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins) e coordenar a elaboração do programa. Mangabeira queria criar uma agência federal exclusivamente para isso, devido à histórica incapacidade do Incra para lidar com o problema. O presidente Lula optou por deixar a execução com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que criou uma nova diretoria para o Terra Legal.

Como tudo o que diz respeito à Amazônia, o Terra Legal envolve números gigantescos. O programa se assenta sobre milhares de glebas de terras que pertencem indiscutivelmente à União e são ocupadas de forma irregular por pequenos posseiros, pescadores, extrativistas e, é claro, por prepostos de grileiros, especuladores e madeireiros que atuam ilegalmente. Somadas, as terras da União disponíveis para o programa cobrem uma área de 67,4 milhões de hectares. É pouco mais de 13% da Amazônia Legal, mas é uma superfície maior que todo o território da Ucrânia, o maior país da Europa, ou o equivalente à soma dos territórios da Alemanha e da Itália. As terras disponíveis para o programa excluem, obviamente, as áreas de conservação de florestas (127 milhões de hectares), as terras indígenas (120 milhões de hectares) e os 7 milhões de hectares de interesse das Forças Armadas.

No começo de fevereiro, o governo editou uma medida provisória fazendo mudanças na legislação, para tornar o projeto viável. "As exigências legais para a regularização de uma posse não eram compatíveis com a realidade da Amazônia", disse o ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel. "Teríamos de mobilizar 1.500 funcionários por 40 anos para cumprir essa tarefa." Pelo novo ritual, uma pequena posse seria legalizada em 45 dias. A primeira mudança permitirá que o governo faça a doação das terras ocupadas por posseiros que tenham até 100 hectares de extensão e a cobrança de valores simbólicos para posses até 400 hectares. Outra mudança reduzirá as exigências, como a vistoria prévia da área a ser legalizada. Um terceiro ponto da medida provisória regulamenta o leilão das áreas entre 1.500 e 2.500 hectares. Acima desse limite, as terras que forem localizadas voltarão ao patrimônio da União e só poderão ser vendidas em leilões públicos, com autorização do Congresso Nacional.

"A bagunça fundiária espanta o capital limpo", 
diz a Associação dos Exportadores de Madeira do Pará

 

O projeto exige que os novos donos da terra cumpram a legislação ambiental e trabalhista e recuperem a área de floresta degradada, em um prazo de dez anos. Antes desse prazo, as posses legalizadas não poderão ser vendidas. "Essa é uma forma de preservar o meio ambiente e desestimular as fraudes", diz o ministro Cassel. Para ter direito à regularização, o posseiro terá de demonstrar que ocupa e explora a terra, "de forma mansa e pacífica", pelo menos desde dezembro de 2004. O candidato não poderá ter outra posse em terras da União, mesmo que seja em projetos de reforma agrária. O pagamento da terra, quando for necessário (cerca de um terço dos casos, segundo o MDA), será financiado em até 20 anos. As áreas serão demarcadas depois de um trabalho de georreferenciamento. Para isso, o MDA vai contratar empresas especializadas. A primeira licitação deverá ocorrer em abril.

A medida provisória dividiu o Congresso em dois grupos historicamente rivais – os ruralistas, ou desenvolvimentistas, e os ambientalistas, ou preservacionistas. O relator da medida provisória, deputado Asdrúbal Bentes (PMDB-PA) pode ser classificado no primeiro grupo. Ele vai apresentar seu relatório na próxima semana, com modificações importantes: a doação de terras seria estendida até o limite de 400 hectares, empresas poderiam ser beneficiadas pelo projeto (não só pessoas físicas) e os imóveis poderiam ser revendidos sem a carência de dez anos. "O projeto precisa se adequar à realidade do campo, a uma situação já existente", diz o deputado. "Pessoas que ficaram décadas produzindo, diretamente ou por meio de empregados, não podem ser punidas agora por esse tipo de exigência."

Do outro lado do Congresso, a senadora Marina Silva (PT-AC) apresentou oito emendas que tornam mais rigorosa a medida provisória das terras da Amazônia. As emendas da senadora, ex-ministra do Meio Ambiente, exigem uma vistoria prévia das áreas, para identificar os problemas ambientais, e a elaboração de um plano de recuperação que deve ser fiscalizado anualmente, até a entrega do título definitivo. Marina também quer limitar a regularização a 400 hectares e criar um conselho externo para acompanhar o programa. "Há detalhes na medida provisória que, se não forem corrigidos, podem desconstruir todo o arcabouço de segurança ambiental que a inspira", diz. Por ser polêmica, a matéria deve tramitar um bom tempo no Congresso. O governo ainda não se definiu também sobre o nome para conduzir o Terra Legal. O ministro Cassel tenta apontar o ex-diretor do Incra Carlos Mario Guedes, mas enfrenta os senadores do PT da Amazônia. Eles querem o lugar para o ex-colega Sibá Machado (PT-AC), suplente de Marina.

Fora do Congresso, especialistas, empresários e posseiros também olham o projeto com expectativa. Paulo Caralo, diretor da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), teme que as regularizações acima de 400 hectares beneficiem os grileiros. "O projeto deveria se concentrar no pequeno agricultor", disse Caralo, na cerimônia de lançamento da MP, em fevereiro. Mas a iniciativa de organizar a situação fundiária da Amazônia recebeu elogios de onde normalmente partem críticas às políticas do governo para a região. "A medida tem o mérito de atacar um problema fundamental, que impede qualquer investimento ou tentativa de dar um uso sustentável para as terras", diz Márcio Astrini, coordenador da campanha contra o desmatamento do Greenpeace, uma das maiores ONGs em ação na Amazônia. Ele diz que torce pelo sucesso da empreitada, mas ressalva que o processo ainda pode favorecer quem agiu fora da lei. "A proposta dá o mesmo tipo de benefício para o pequeno agricultor, que pratica subsistência, e para os especuladores que grilam terra pública para revender, muitas vezes com auxílio de pistoleiros." Paulo Barreto, diretor do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), é um dos maiores críticos do projeto. "Ao prever a doação de terras, o governo comete dois erros", diz. "Está premiando quem invadiu e desmatou, além de estimular novas ocupações pelo exemplo." Para Barreto, o correto seria cobrar pela terra e pelos prejuízos já causados ao meio ambiente.

Como qualquer grande empreendimento, o Terra Legal será julgado pelos resultados – e estes vão depender muito mais da maneira como ele será conduzido que do espírito da lei. "A bagunça fundiária espanta o capital limpo, atrai violência e prejudica a população mais pobre; ela só é boa para quem se beneficia do caos", diz Justiniano de Queiroz Neto, dirigente da Associação dos Exportadores de Madeira do Pará. "As boas intenções do programa são claras, mas é preciso que sua condução também seja clara, objetiva e eficaz." O Ministério do Desenvolvimento Agrário tem três anos para demonstrar que os temores em torno do programa são apenas mais um dos mitos em torno da Amazônia.

 Reprodução
Fernando Matos


"Crê nos que buscam a verdade. Duvida dos que a encontram." André Gide

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