Sem-terra pulverizam captação de verba oficial
Rede é tão intrincada e ampla que controle fica cada vez mais difícil
Roldão Arruda
O Movimento dos Sem-Terra (MST) e outras organizações similares conseguiram montar ao longo dos anos - com o apoio de aliados em associações e cooperativas de assentados da reforma agrária - uma intrincada e ampla rede de captação de recursos públicos. Espalhada por todo o País, ela é tão intrincada e tão ampla que sua fiscalização se torna cada vez mais difícil.
O controle dos repasses de verbas públicas, como exigiu na semana passada o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, para evitar que, em vez de serem utilizadas na melhoria dos assentamentos, sejam desviadas para financiar invasões de terras e atos de violência, não é fácil. Um exemplo disso é o que vem acontecendo com o Tribunal de Contas da União (TCU).
A instituição redobrou nos últimos anos os cuidados com a análise das prestações de contas das grandes associações e confederações da reforma agrária ligadas ao MST. O esforço resultou na detecção de tantas irregularidades que o governo se viu obrigado a suspender o repasse de recursos para as principais delas.
O pior caso foi a da Associação Nacional de Cooperação Nacional (Anca), cujas instalações servem como base de apoio operacional do MST em diversas partes do País. Após receber quase R$ 17 milhões entre 2004 e 2006, a Anca passou os dois últimos anos à míngua, sem receber nada dos cofres públicos.
NOS ESTADOS
Por outro lado, as verbas do governo continuam pingando sem problemas nos cofres das filiadas estaduais da Anca - espalhadas por quase todo o País. No ano passado, a Associação Estadual de Cooperação Agrícola de Santa Catarina recebeu R$ 387.349 do governo, conforme dados da Controladoria-Geral da União (CGU). Foi mais do que o dobro dos R$ 134.980 com que havia sido distinguida em 2007.
No Pontal do Paranapanema, no interior de São Paulo, onde ocorreram as invasões de terra que deram origem às declarações de Mendes, há mais de meia dúzia de entidades recebendo dinheiro federal. Duas delas, a Federação das Associações de Assentados e Agricultores Familiares do Oeste Paulista e a Associação dos Amigos de Teodoro Sampaio, são controladas por José Rainha, dissidente do MST e principal líder das invasões na região.
A primeira recebeu do governo R$ 1,3 milhão entre 2007 e 2008. A segunda, a Associação dos Amigos, ganhou mais: R$ 1,8 milhão nesse período. No total, foram cerca de R$ 3,1 milhões. Oficialmente, esses recursos deveriam ter sido usados na implantação de projetos de produção de biodiesel no Pontal.
A Procuradoria da República tem dúvidas sobre o real destino das verbas. Tanto que, na semana passada, um dia após as declarações do presidente do STF, pediu à Polícia Federal a abertura de inquérito para verificar denúncias anônimas sobre o uso do dinheiro. Suspeita-se que tenha sido desviado para outros fins.
Não são só as entidades vinculadas ao MST e a Rainha que se beneficiam. De acordo com as informações da CGU, funciona no município de Restinga, no interior paulista, a sede da Associação Nacional de Apoio à Reforma Agrária do Estado, à qual foram destinados no ano passado R$ 458 mil para um projeto de capacitação técnica dos assentados.
Essa entidade está sob as asas do Movimento de Libertação dos Sem-Terra, controlado por Bruno Maranhão. É a mesma organização que promoveu em 2006, com um quebra-quebra, a invasão do Congresso.
No total, segundo a Ouvidoria Agrária, ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, quase 70 movimentos de sem-terra operam no País. Nenhum tem fachada legal. Mas boa parte se associa a entidades com registro legal, que recebem verbas federais. O mais organizado e amplo é o MST.
''O ministro Gilmar está muito distante da realidade''
ENTREVISTA - Jaime Amorim: Líder do MST em Pernambuco
Roldão Arruda
Jaime Amorim é o principal líder do Movimento dos Sem-Terra (MST) em Pernambuco e um dos encarregados - pela coordenação nacional do movimento - de multiplicar líderes e ações dos sem-terra nas regiões Nordeste e Norte do País. Nesta entrevista, ele defende o repasse de verbas públicas para entidades de assentados e rebate as críticas do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, feitas após um conflito envolvendo sem-terra que resultou na morte de quatro seguranças, no dia 21, em São Joaquim do Monte, região a 137 quilômetros do Recife.
Como viu as críticas de Gilmar Mendes ao repasse de verbas para movimentos que estariam promovendo atividades ilegais, como invasões de terras?
O ministro Gilmar está muito distante da realidade. Ignora que os recursos são destinados a cooperativas, associações, institutos, ONGs, que cumprem atividades que deveriam ser executadas pelo Estado. Elas fazem aquilo que o Estado não faz, por falta de estrutura ou de competência.
Que atividades?
Elas estão concentradas principalmente nas áreas de assistência técnica, capacitação de assentados, crédito, formação de cooperativas, educação. Em vez de se preocupar tanto com o uso desse dinheiro nos assentamentos da reforma, o ministro deveria se ocupar mais com os problemas do funcionamento do Judiciário.
Por que diz isso?
Veja o caso da Fazenda Jabuticaba, em São Joaquim do Monte. Trata-se de uma terra improdutiva e, por isso mesmo, apta para a desapropriação para a reforma agrária, como determina a Constituição. O Incra vem tentando desde 2002 desapropriar a fazenda, mas o processo fica emperrado no Judiciário, que se preocupa sobretudo em favorecer os latifundiários, os donos das terras improdutivas. Mesmo depois da primeira vistoria das terras, em 2002, que constatou que a produtividade estava abaixo dos índices legais, o juiz que cuida do caso autorizou a subdivisão da propriedade, o que não é permitido por lei. Por que o Gilmar não fala disso? Por que não fala das várias ações envolvendo questões agrárias que estão paralisadas no STF?
Falando em termos de legalidade, como tratar as invasões?
Pela Constituição, quem ocupa uma terra improdutiva é que está na ilegalidade. A ocupação de terras é uma ferramenta, um instrumento de luta legitimado há muito tempo pela sociedade, usado para reivindicar a reforma agrária, para forçar o governo a cumprir o que está inscrito na Constituição. É também uma forma de denunciar a permanência do latifúndio.
MST não tem CNPJ por ser ''um movimento'', afirma Stedile
Sem existência formal, entidade usa associações e cooperativas para receber repasses de verbas públicas
Roldão Arruda
Do ponto de vista puramente técnico, é quase impossível de ser atendida a cobrança de Gilmar Mendes, presidente do STF, para que o governo deixe de repassar recursos a entidades que promovem invasões de terras e agem na ilegalidade. Afinal, o governo não repassa dinheiro para o MST ou qualquer movimento que encabece invasões ou participe de atos de violência, como o que resultou na morte de quatro seguranças contratados por fazendeiros de Pernambuco, no dia 21.
Os recursos vão para associações e cooperativas de assentados da reforma agrária. Elas possuem documentos legais, CNPJ, sede, enfim, tudo o que é necessário para a celebração de convênios com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, por onde passa o dinheiro dos assentamentos. Oficialmente, a verba deve ser destinada para a melhoria da vida dos assentados. Na prática, suspeita-se que parte dela seja desviada para financiar invasões.
Para entender melhor, é preciso lembrar que o MST não possui existência legal. Oficialmente inexiste. E, segundo seu principal líder, João Pedro Stédile, nunca vai existir. Diz ele que se trata de um movimento social, não de uma instituição.
Por outro lado, o MST precisa do dinheiro público para tocar assentamentos erigidos sob a batuta de seus camaradas. Para consegui-lo, montou associações e cooperativas legais por todo o País. É para elas que se destina o dinheiro que Mendes quer segurar.
As ligações entre essas duas partes do MST são íntimas. Quando alguém telefona para algum diretor do MST nos locais em que costumam ficar, em São Paulo, Brasília e em outras partes do País, é informado de que ali é a sede da Anca - a principal organização de fachada do movimento.
As suspeitas sobre o desvio de dinheiro não são novidades. Foram levantadas pela primeira vez pelo ministro Raul Jungmann, que chefiou a pasta do Desenvolvimento Agrário no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Acossado por uma média superior a 500 invasões de propriedades rurais por ano, ele suspendeu o repasse de verbas para as principais entidades ligadas ao MST. Ao mesmo tempo conseguiu que o presidente assinasse uma lei punindo invasores de terras: os que fossem flagrados nessas ações ficariam afastados por dois anos de qualquer possibilidade de serem assentados. A combinação das duas medidas resultou numa queda notável no ritmo de invasões.
As torneiras foram reabertas, porém, em 2003, quando Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao poder.
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