segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Paulo Vannuchi: 'Não se pode tolerar a ideia de impunidade'

Ao iG, ex-ministro de Direitos Humanos diz que Forças Armadas não concluíram totalmente a transição para o regime democrático

Ricardo Galhardo, iG São Paulo | 28/08/2011 



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Paulo Vannuchi: 'Não se pode tolerar a ideia de impunidade' Ao iG, ex-ministro de Direitos Humanos diz que Forças Armadas não concluíram totalmente a transição para o regime democrático
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Paulo Vannuchi: 'Não se pode tolerar a ideia de impunidade' Ao iG, ex-ministro de Direitos Humanos diz que Forças Armadas não concluíram totalmente a transição para o regime democrático
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A resistência a ações como a abertura dos arquivos secretos, a criação da Comissão da Verdade e, principalmente, a reinterpretação da Lei da Anistia mostra que as Forças Armadas brasileiras ainda não completaram o ciclo transição da ditadura militar (1964-185) para o regime democrático. A opinião é do ex-ministro da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi.
Segundo ele, um setor minoritário das Forças Armadas ainda vive o clima da Guerra Fria, que acabou com a queda do muro de Berlim. “O que é o comunismo hoje no Brasil? O comunismo no Brasil hoje é o ministro do Esporte, Orlando Silva, que cuida centralmente da Copa do Mundo e das Olimpíadas, e o deputado Aldo Rebelo que acaba de ser o relator de um Código Florestal que foi amplamente aplaudido pelos ruralistas”, disse o ex-ministro.
Na última quinta-feira Vannuchi, ele próprio ex-preso político torturado, recebeu o iG para uma conversa no Instituto Luiz Inácio Lula da Silva, no bairro do Ipiranga, na capital paulista, onde trabalha como assessor do ex-presidente. Confira os principais trechos da entrevista:
iG - Quais são as marcas visíveis da Lei da Anistia ainda hoje na democracia brasileira?
Paulo Vannuchi – Ao não fazer o exame você está gerando um problema muito maior do que a questão da memória e da violência em si. Estou falando da dificuldade que as Forças Armadas brasileiras manifestam no sentido de completar o ciclo de republicanização, a compreensão ampla de que o poder é civil e é bom que seja assim e que não se pode conceber nunca mais a ideia de depor um presidente da República pelos tanques.


Foto: Futurapress
Desde a decisão a favor da Lei da Anistia, STF não passou por renovação, afirma ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos

iG – Este ciclo ainda não foi totalmente completado pelos militares?
Paulo Vannuchi – Frize bem a palavra totalmente para não parecer que estou generalizando. As Forças Armadas hoje têm um grande contingente que fez a transição. Este contingente é muito bem representado pelos três comandantes das armas. Mas ainda existem situações como no último 31 de março, quando a presidenta Dilma teve que determinar para que não houvesse comemorações do golpe de 1964. No Brasil ainda existe um temor exagerado, errado. A Guerra Fria acabou. O que é o comunismo hoje no Brasil? O comunismo no Brasil hoje é o ministro do Esporte, Orlando Silva, que cuida centralmente da Copa do Mundo e das Olimpíadas e o deputado Aldo Rebelo que acaba de ser o relator de um Código Florestal que foi amplamente aplaudido pelos ruralistas.

iG – O pensamento desta minoria militar tem ressonância na sociedade? Falo do que aconteceu na campanha presidencial do ano passado quando Dilma foi acusada de ser terrorista.
Paulo Vannuchi – Ressonância tem. O problema grave é a dificuldade de mensurar. Se eu quero saber o que pensa o Judiciário brasileiro, faço uma pesquisa com os juízes. Mas ninguém faz isso com as Forças Armadas porque o código de disciplina não permite. Quanto ao impacto eleitoral em 2010, o João Santana definiu muito bem ao dizer que nós erramos ao demorar para entender o que estava acontecendo, mas deixa claro que quando o José Serra foi para a linha do aborto perdeu completamente a chance de ganhar a eleição. Existe ressonância, mas a democracia brasileira hoje se move por consensos que movimentam 60%, 70% da população. Hoje compomos uma ampla maioria que pensa na linha de dizer não à homofobia, não ao racismo, pela defesa dos direitos da mulher etc.

iG - A impunidade foi o preço que o País teve que pagar pela volta da democracia?
Paulo Vannuchi – Uma definição que tem origem na Europa mas que a Marilena Chauí formula diz que a democracia é a renovação permanente da política. A gente não fala de democracia como algo estático, que passou. O argumento sobre a impunidade foi muito usado no período de 1979. Na época a sensatez política dizia que o mais importante era a volta da democracia. Agora o mundo evoluiu, a democracia, o direito mundial evoluíram. Por isso é necessário reexaminar os processos históricos com vistas para o futuro. No caso da Líbia, agora, vamos ouvir falar em tribunais internacionais. Certamente os acusados vão alegar que agiram sob o amparo das leis líbias. Acontece que Nuremberg derrubou isso. A Alemanha não tinha o direito de ter aquelas leis porque acima da legislação alemã há o direito internacional. Todo o debate que há no Brasil hoje sobre a Lei da Anistia é este. O que menos importa hoje é o que Petrônio Portela e João Baptista Figueiredo pensavam em 1979. O que importa é que há um diploma internacional ao qual o Brasil aderiu, a Convenção dos Direitos Humanos da OEA, que já tem jurisprudência na Corte da OEA de não aceitar leis de anistia auto-concedidas enquanto não havia democracia.
É preciso que haja luz sobre os fatos ocorridos, arquivos, nomes, datas etc. Temos de dar um futuro a este passado. A Comissão da Verdade está à mão.
iG – Ainda existe possibilidade de punição aos torturadores e assassinos da ditadura militar?
Paulo Vannuchi – A discussão sobre qual tipo de punição é necessária ou cabível envolve muitos aspectos. O que não se pode tolerar é a ideia de impunidade. O Supremo Tribunal Federal acaba de decidir que não cabe punição penal. E tem a decisão da OEA que mais dia menos dia terá que ser apreciada pelo Supremo. Não existe reconciliação com torturados que nem ao menos reconhece que houve tortura, como o Ustra (coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi). Isso é de um cinismo intolerável que rompe com a honra militar. O código de honra do Exército foi rompido por um oficial de alta patente que diz que não houve tortura. Ele está mentindo descaradamente. Nisso o Bolsonaro merece louvor por ter admitido que houve tortura. Isso é ruim para as Forças Armadas, principalmente virando a 5ª economia do mundo. Sou daqueles que consideram o perdão uma atitude positiva. Mas para isso é preciso que haja luz sobre os fatos ocorridos, arquivos, nomes, datas etc. Temos de dar um futuro a este passado. A Comissão da Verdade está à mão. Em dois anos ela pode apresentar um relatório que desfará todas as brumas ideológicas. Ela não vai dizer que houve uma guerra entre anjos e demônios. Este relatório pode balizar a Justiça. O mais importante é a quebra da impunidade. Para mim não é necessário que as pessoas sejam enviadas para a cadeia, mas se isso acontecer não vou ficar triste.
iG – O senhor tem esperança que o STF reavalie a decisão?
Paulo Vannuchi – A curto prazo, menos. Desde a decisão a favor da Lei da Anistia o STF ainda não passou por um processo de renovação. O ministro Joaquim Barbosa não votou. Haverá a presidência de Carlos Ayres Brito que foi um dos votos discordantes. O ministro Luiz Fux também não estava. Será um retrocesso enorme para o Brasil dizer que simplesmente vai ignorar a decisão da OEA. Com a Comissão da Verdade um relatório pode gerar um consenso amplo no Brasil de que é muito danoso deixar tudo como está. O que pode ser construído é o com base no relatório da Comissão da Verdade o Ministério Público instaurar um procedimento optando por uma ação civil cuja punição pode ser uma ação declaratória. Os familiares e vítimas ficarão legitimamente insatisfeitos. Só que mais importante do que a dose é ficar impune. Havendo uma declaração na Justiça que a seguinte lista de militares,policiais etc. são responsáveis por práticas de tortura individualizadas caso a caso, já significa muito. Não vai ter conseqüências práticas mas fica na história, vai para os livros de direito.

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