segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Oito anos de mudanças: a polêmica questão dos direitos humanos


Vermelho

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02/10/2010

Oito anos de mudanças: a polêmica questão dos direitos humanos

A área de direitos humanos do governo Lula talvez seja a aquela de mais forte embate das forças progressistas com a resistência ainda viva de setores conservadores da estrutura estatal. Se houve uma evolução clara no sentido de valorizar os direitos básicos de cada brasileiro e brasileira, no que tange à questão dos mortos e desaparecidos da ditadura militar, as conquistas foram tímidas devido ao entrave representado por aqueles que ainda tentam manipular a história.

Por Priscila Lobregatte

"Uma coisa é o direito à memória, outra é revanchismo e, para o revanchismo, não contem comigo". A sentença, dita pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim em 2009 reflete esse embate. Na ocasião, discutia-se uma ação da OAB que questionava junto ao Superior Tribunal Federal o perdão dado a agentes da ditadura beneficiados pela Lei de Anistia. Como era de se esperar, o STF decidiu em abril deste ano pela não revisão da lei, ou seja, por manter tudo como sempre esteve.


No lado oposto desta batalha pela verdade, o secretário nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, opinou que "a impunidade realimenta [atos de violência] porque as pessoas torturam e falam que nunca houve um torturador condenado no Brasil. E quando começa haver a condenações por tortura, o torturador para de torturar por medo da punição".

Opondo-se à tese do revanchismo, levantada por aqueles que tentam desmerecer a busca da memória e da verdade, Vannuchi argumenta: "Essas violações devem ser tratadas com maturidade, serenidade, sem espírito revanchista, sem querer reabrir as fissuras de um passado que todos hoje condenamos".

Apesar de sua posição clara em favor dos militares, Jobim se viu obrigado, como responsável pela Defesa, a organizar o Grupo de Trabalho Tocantins, que percorreu a região do Araguaia em busca dos restos mortais dos guerrilheiros assassinados pela repressão no começo dos anos 1970. 

Até agosto deste ano, foram realizadas quatro expedições à região. Essas buscas resultam de decisão da justiça federal que sentenciou o Estado brasileiro a permitir o acesso a arquivos e a organização de buscas aos restos mortais dos guerrilheiros, uma luta travada por familiares e entidades de direitos humanos desde os anos 1980. A procura feita na área não obteve resultados até o momento.

Em outubro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos vai julgar o Caso Araguaia e o resultado pode ser um passo importante para o país ir adiante no esclarecimento do destino dos 69 mortos deste nebuloso episódio da história brasileira.

Memórias reveladas

Se por um lado a busca pela justiça e pela elucidação da história brasileira durante a ditadura segue caminhos tortuosos, por outro houve avanços importantes. Um deles foi a criação do arquivo Memórias Reveladas, ou Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985).

O projeto é resultado de decreto assinado pelo presidente Lula em novembro de 2005, regulamentando a transferência para o Arquivo Nacional dos acervos dos extintos Conselho de Segurança Nacional, Comissão Geral de Investigações e Serviço Nacional de Informações, até então sob custódia da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e passou à Casa Civil a coordenação dos arquivos. "Estamos abrindo as cortinas do passado, criando as condições para aprimorarmos a democratização do Estado e da sociedade. Possibilitando o acesso às informações sobre os fatos políticos do País reencontramos nossa história, formamos nossa identidade e damos mais um passo para construir a nação que sonhamos: democrática, plural, mais justa e livre", assinalou a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, na apresentação do projeto. O mesmo sentido teve o lançamento do livro Direito à memória e à verdade, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da SEDH, em 2007.

PNDH-3

Também não foi sem polêmica que se deu a implantação do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), resultado do decreto 7.037 de 21 de dezembro de 2009 e atualizado pelo decreto 7.177 de 12 de maio de 2010.

Do lançamento de sua primeira versão à sua implantação, muita coisa foi mudada contemplando justamente os setores mais conservadores. Foram os anéis, ficaram os dedos. A ausência de um debate mais amplo e honesto por parte dos meios hegemônicos de comunicação fez com que pontos importantes da proposta original fossem retirados para que o PNDH-3 seguisse seu caminho.

Vale lembrar que embora o governo tenha sido acusado de antidemocrático pela oposição conservadora devido às propostas contidas no PNDH-3, este documento – atualização do segundo lançado em 1996 sob FHC – foi o clímax de um amplo debate. O programa incorpora as resoluções da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos – que reuniu 1.200 delegados e 800 convidados em Brasília no ano de 2008 – com as propostas aprovadas nas mais de 50 conferências nacionais temáticas promovidas desde 2003.

Os pontos que incomodaram a elite envolveram questões antigas: terra, religião, aborto, ditadura e mídia. No primeiro caso, a proposta era que só teriam poder as liminares de reintegração de posse feitas com base em audiência pública que analisasse a função social da propriedade reivindicada, impedindo assim reintegrações violentas e imediatas por meio de uma mediação pacífica. Os ruralistas chiaram.

O programa também colocava a proibição do uso de símbolos religiosos em espaços públicos, respeitando o caráter laico do Estado. O mesmo ocorreu com a descriminalização do aborto, a união civil entre pessoas do mesmo sexo e o direito de adoção de crianças por casais homossexuais. A igreja católica chiou.

Outro ponto polêmico foi a criação da Comissão pelo Direito à Verdade para examinar os atentados contra os direitos humanos ocorridos na ditadura. Aí foi a vez de os militares chiarem. "Após pressão do Exército, a solução encontrada foi retirar do plano referências à repressão, mas substancialmente a proposta de analisar e punir os crimes políticos permanece. Preocupa-nos, no entanto, o impacto político deste recuo. A importância desse ponto é finalmente desvendar essa página obscura da história do Brasil, em que centenas de algozes ainda não foram responsabilizados pelas torturas praticadas, e enfim superar a violência institucional", escreveu João Paulo Mehl, membro do PT de Curitiba e do coletivo Intervozes.

No que se refere especificamente ao direito à comunicação, quem chiaram foram os caciques das comunicações. Como escreveu o professor aposentado da UnB, Venício Lima: "o novo Decreto mantém a ação programática (letra a) da Diretriz 22 que propõe 'a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados'. Agora, no entanto, foram excluídas as eventuais penalidades previstas no caso de desrespeito às regras definidas. Foi também excluída a letra d, que propunha a elaboração de 'critérios de acompanhamento editorial' para a criação de um ranking nacional de veículos de comunicação".

Apesar destes obstáculos, o governo Lula conseguiu elevar a um patamar mais alto o respeito aos direitos humanos, seja por iniciativas na área ou mesmo pelas melhorias que as mudanças econômicas e sociais trouxeram ao povo brasileiro. Nestes últimos anos ocorreram inúmeras ações visando a acabar com o trabalho escravo e a promover programas afirmativos em prol de pessoas com deficiência, idosos e envolvendo a luta contra a homofobia, bem como o cuidado específico às crianças e aos adolescentes e o combate de todas as formas de violações dos direitos humanos pelas ruas e presídios do país. Mas ainda falta enfrentar questões que mexem com os brios de fatias atrasadas da população. Este, certamente, será um dos desafios a ser enfrentado no mandato da presidente Dilma Rousseff.

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