domingo, 17 de outubro de 2010

Secretário Ricardo Henriques fala sobre UPP social


ENTREVISTA

Após pacificação, UPP social é a aposta do Secretário estadual de Assistência Social para levar cidadania às favelas

Carla Rocha

RIO - "Vamos combinar?". A pergunta parece boba, mas não para o doutor em economia Ricardo Henriques. Ele a tem levado, como convite, às favelas pacificadas no Rio. Um dos idealizadores do Bolsa Família, Henriques é secretário estadual de Assistência Social e Direitos Humanos e assume, aos 50 anos, o desafio de fazer o Estado dialogar com esses territórios, antes dominados pelo crime. Ele propõe uma "escuta forte" - "sem o democratismo banal, em que todo mundo fala" - e quer o paternalismo longe do projeto, que chama de UPP social e já chegou à Cidade de Deus e à Providência. Em dez dias, começa a fazer um mapa falante nas comunidades, para que os moradores digam quem são e do que precisam.

O que é UPP social e qual o grande o desafio do projeto?

RICARDO HENRIQUES: O primeiro passo é entender que a pacificação antecede a UPP social. Ela é pré-condição para uma política de cidadania, ou desenvolvimento social, nesses territórios. UPP social é um processo de coodenação e facilitação entre as necessidades dos territórios pacificados e as possibilidades de ação de governo, da sociedade civil e do setor privado. Há uma enorme fragilidade social nesses territórios. A gente precisa viabilizar o encontro dessas agendas.

Quando se fala em cidadania, as pessoas tendem a entender a palavra de forma abstrata. O que vocês querem levar para as comunidades pacificadas?

HENRIQUES: Não tenho nenhuma noção. Não quero idealizar que vamos transformar o território da UPP numa panaceia, no melhor dos mundos. Depois de 20, 30 anos de guerra, há uma dívida enorme. Precisamos fazer esses lugares chegarem a um padrão minimamente regular da cidade. Há gerações, jovens de 20, 25 anos, que não conhecem outra realidade. A missão é, a partir da UPP social, quebrar a ideia de apartação, de cidade partida do (jornalista) Zuenir (Ventura) e, até 2016 (a gente fixou uma data simbólica), ter uma cidade integrada. Mas isso não significa resolver todos os problemas. O marco de seis anos tem a ver com dois processos: o mapa da pacificação, até 2014, mais dois anos de intervalo e as Olimpíadas.

Depois de anos sem serviços essenciais, as reivindicações se restringem a temas emergenciais ou as pessoas têm clareza sobre outras necessidades?

HENRIQUES: Precisamos de uma escuta forte. Não é aquela coisa de democratismo banal, com todo mundo falando. É uma visão muito atenta, mas produtora de engajamento. Na primeira reunião do fórum na Cidade de Deus, com 120 pessoas, as principais demandas eram nas áreas de saúde e educação. Lá existem 12, 13 escolas, mas nenhuma de ensino médio. Os meninos e as meninas têm que ir para a Barra ou Jacarepaguá para estudar. Já na Providência, o mesmo exercício teve resultado totalmente diferente: a preocupação era sinalização para a entrada de veículos no morro. Quando fizemos os dez mapas etnográficos das comunidades ocupadas, vimos que há fragilidades comuns, mas percepções e demandas singulares.

Qual é o déficit de serviços?

HENRIQUES: Tem um padrão grande que é de déficit de serviços sociais básicos, água luz, lixo e esgoto. A questão da luz foi uma experiência interessante no Santa Marta. Estamos trabalhando junto com a Light, agora, na Providência. Está em discussão a forma de fazer a provisão de luz, a uma tarifa subsidiada, em que todo mundo passe a ser adimplente. Como havia o gato, a percepção é que os valores, mesmo subsidiados, são altos.

Como é administrar esta mudança cultural no padrão de consumo?

HENRIQUES: É tudo uma agenda de direitos e deveres. Uma das dimensões que mais explicam o processo de favelização e precarização é a informalidade. No PAC do Alemão, constatou-se que há mais ou menos sete mil estabelecimentos comerciais, 90% deles informais. Formalizar é fundamental, mas necessita de uma regra de transição. Caso contrário, eu quebro esta economia. No caso da luz, eu tenho que ter consciência de que a tarifa vai ser menor do que em outras áreas da cidade, mas será preciso aprender a consumir. Parte da classe média do Rio de Janeiro, durante o apagão, teve que mudar seu padrão de consumo. Qual o sentido de todo mundo ficar com o ar condicionado a mil, 24 horas por dia, com janela aberta? Mas esse aprendizado não vai acontecer em seis meses ou um ano. É precipitado para uma história de 20 anos.

E o gatonet?

HENRIQUES: Fizemos grandes inovações. Uma operadora passou a cobrar R$ 44,90 num pacote com 90, cem canais. É um programa focado exclusivamente nas UPPs. Não se trata de responsabilidade social, é negócio. O empresário quer entrar nos segmentos E, D e C. Já estamos com 600 assinaturas.

Não quero idealizar que vamos transformar o território da UPP numa panaceia, no melhor dos mundos. Depois de 20, 30 anos de guerra, há uma dívida enorme

No campo dos direitos, qual é a principal meta?

HENRIQUES: Uma questão fundamental é a formalização. Formalizar negócios. Estamos atuando com o Sebrae e a prefeitura, com o projeto Empresa Bacana. No primeiro dia na Cidade de Deus foram formalizados quase 200 negócios. Hoje já são 330 com alvará e CNPJ. Há uma estimativa, não oficial, de que lá existam 800 negócios. É só abrir o espaço para a formalização que as pessoas voluntariamente vão ao encontro disso. Além disso, quando a gente sai da guerra, depara-se com déficits civis, além dos econômicos e sociais. Não há um sistema de regras. Esses lugares estavam sem República. Oscilavam entre um Estado totalmente autoritário ou a anarquia. Era a anarquia do "dane-se, vire-se" ou autoritarismo que, como um juiz, decidia as punições. Há casos de brigas de casal em que as mulheres eram obrigadas a raspar a cabeça por ordem do tráfico ou da milícia.

A questão dos direitos e deveres se aplica não se aplica à questão do baile funk?

HENRIQUES: A República tem que levar um sistema de regras e leis que vão desde a oferta de serviços básicos até questões sobre o limite do som, e o ícone disso são os bailes funks. Quem decide? Quem arbitra as regras? Só o jovem ou os avós e as crianças também? O policial da UPP tem voz nisso ou não? No Tabajaras, depois de intensa discussão, já foram realizados três bailes. Entendemos que se criminalizou o baile funk de forma arbitrária. O tráfico se apropriou desta linguagem, mas não faz nenhum sentido a proibição. Esta posição está consensuada entre a área social e da segurança. A gente usa uma expressão chave, que é "vamos combinar". Vamos combinar qual é a responsabilidade do governo, do morador e do setor privado? Estamos acordados, combinados? Então, vamos fazer.

Como se criam as condições para se estabelecer estas regras?

HENRIQUES: As regras têm que ter uma enorme capacidade de bom senso. Se, além do alvará e do CNPJ, por exemplo, eu entrar nas empresas com avaliação de vigilância sanitária, que não passa nem no Leblon, eu não vou estar formalizando, mas quebrando os negócios. É uma transição. Ao mesmo tempo, só formalizando teremos uma integração real com a cidade. No Chapéu Mangueira e na Babilônia, os próprios moradores propuseram a criação do "Alto Leme". Se você formaliza negócios e estimula o turismo ecológico e gastronômico no Chapéu Mangueira, que tem uma das vistas mais interessantes do mundo, de onde você vê a Praia do Leme, o Morro da Urca todo e o bondinho, por que a juventude do Rio de Janeiro não iria até lá?

Os jovens são um problema ainda mais delicado, devido à herança do tráfico. Qual será a abordagem?

HENRIQUES: Os donos do morro foram embora, mas ficou o jovem que estava na endolação, que ia para a escola e tirava uma grana enrolando baseado. Precisamos ter um projeto sedutor para ele, que vivia numa rede de poder perverso. Era quem carregava o fuzil que ficava com a menina mais bonita do morro. A juventude desses locais tem um perfil curioso. O jovem tem grandes fragilidades, como baixíssima escolaridade, mas uma grande capacidade de iniciativa, de trabalhar em equipe e de fazer que os outros trabalhem, tudo o que o mercado de trabalho valoriza hoje. E aprenderam tudo isso no mundo do tráfico, da ilegalidade. Além da mediação de conflitos, a Casa da Justiça, que também vai começar em breve, vai focar no potencial desses jovens.

Tem gente que acha que a UPP social demorou a acontecer, que poderia ter sido criada simultaneamente ao projeto de pacificação.

HENRIQUES: Eu penso que era um processo de aprendizado. O secretário (de Segurança, José Mariano) Beltrame foi percebendo que os jovens capitães, que estão à frente das UPPs, começaram a ficar sobrecarregados com demandas que nada tinham a ver com a segurança.

Como são constituídas as equipes da UPP social?

HENRIQUES: Cada favela tem um coordenador, três assistentes e dez jovens universitários. A nossa verba é mais para pessoal. Ser leve é fundamental. Se eu produzir uma burocracia, se precisar de um prédio, equipamentos e de um guichê, o negócio se torna inviável.

Quando a UPP social estará em todas as favelas pacificadas?

HENRIQUES: Meu sistema de gestão está se expandindo. A meta é estar plenamente em dez comunidades com UPPs até o final do ano. Hoje estamos com a equipe completa na Cidade de Deus, na Providência e, em breve, estaremos no Borel.

O secretário de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, Ricardo Henriques, dá entrevista em seu gabinete sobre as UPPs Sociais - Foto de André Teixeira / Agência O Globo

Como medir a eficácia do projeto?

HENRIQUES: Criamos recentemente a Câmara de Gestão Municipal da UPP Social, porque há uma forte agenda pública da prefeitura. Também estamos formatando um conjunto de indicadores que vai dizer qual é o salto que estamos dando e em que estágio a gente está na provisão de serviços. A UPP social é transitória. Ela tende a acabar quando a gente sair da condição extraordinária de guerra para uma situação regular de integração com a cidade.

Quais são as novidades que vêm pela frente?

HENRIQUES: Dentro de dez dias, vamos começar a fazer o mapa falante, em parceria com uma ONG. Vamos para cada comunidade levantar a estrutura disponível e a oferta de serviços públicos. A ideia é saber coisas como os trajetos das pessoas, os equipamentos disponíveis, quais são as áreas de socialização e até por onde os jovens andam, a taxa de incidência de doenças. Chamamos de mapa falante porque você capta as informações a partir da própria narrativa dos moradores, que vão construir a cartografia do local.

Já imaginou quanto tempo levará até reverter o quadro social das favelas do Rio que eram dominadas pelo tráfico?

HENRIQUES: Seria muito leviano dar um chute. É muito interessante, depois de dois meses, ver como as coisas estão andando muito mais rápido do que o esperado. O domínio da guerra submeteu as pessoas, inclusive seus horizontes temporais. Os jovens, com a possibilidade concreta de morte, tinham as expectativas muito reduzidas, presentificadas. O que cria um grande otimismo é ver que o represamento todo da guerra criou uma enorme dor e fragilidade, mas o oxigênio reposicionou o cenário. A vontade de viver uma vida de qualidade é maior. E, na medida que a UPP começou, o discurso da classe média do Rio também mudou. Se havia ceticismo e fatalismo, hoje todos querem cooperar. A responsabilidade do Estado é ainda maior. A ausência era decorrência da guerra e, com o fim dela, esta ausência fica nua. Não dá para ficar na pauta antiga do século 20, precisamos ir rapidamente para o século 21. Precisamos ser eficientes e coordenados. Chega da antiga amarra patrimonialista, politiqueira e cheia de bolor.

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