quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Dupla rendição (Zuenir Ventura, O Globo)

 

Na cerimônia de posse de Dilma Rousseff, houve momentos de ineditismo para figurar na série "nunca antes na história deste país", a começar pelo ponto culminante do espetáculo: um homem passando a faixa presidencial para uma mulher. Houve Lula quebrando o protocolo e caindo nos braços do povo chorando, houve a nova presidente de braços dados com o anterior, houve um efusivo aperto de mãos entre Hillary Clinton e Hugo Chávez.

Mas o que mais chamou minha atenção, pelo simbolismo e significado histórico, foi a revista das tropas — uma cena marcante em que se observou uma dupla rendição à democracia. De um lado, a ex-guerrilheira que há mais de duas décadas acreditava tomar o poder pelas armas. Do outro, perfilados e em reverente continência, representantes das forças militares que na mesma época sustentavam com mão de ferro a ditadura.

Nenhuma das duas partes acreditava na democracia, que acabou sendo a única vencedora da história.

Alguns dias antes, como presente de Natal para os argentinos, o general ditador Rafael Videla, 85 anos, que governara o país de 1976 a 1981, era condenado à prisão perpétua por crime contra a humanidade, ele e mais doze comparsas — policiais, militares e carcereiros — por terem sequestrado, torturado e fuzilado 31 presos políticos em 1976. O julgamento parecia feito de propósito pelos hermanos para humilhar o Brasil, que até hoje não conseguiu mandar para a cadeia um torturador sequer, general ou soldado raso. Em compensação, quando Dilma desfilou toda garbosa diante das tropas, o rito poderia ser interpretado como uma espécie de troco. Era como se disséssemos: é verdade que não conseguimos condenar ex-torturadores, mas elegemos uma ex-torturada presiidente República.

No seu discurso de posse, a ministra de Direitos Humanos, Maria do Rosário, prometeu avançar no processo de reconhecimento das violações ocorridas no período do regime militar. O projeto de lei que cria a Comissão Nacional da Verdade sobre os mortos e desaparecidos foi enviado ao Congresso em maio de 2010 por Lula e tem por objetivo promover a reconciliação nacional, esclarecendo os "casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria".

Rosário garante que "não se trata jamais de revanche" e, otimista, afirma que dentro das Forças Armadas "existe também o desejo de ter esse processo concluído". Será? Não sei, mas talvez seja um traço do caráter nacional a facilidade com que anistiamos e a dificuldade com que punimos os culpados, o que não é a melhor maneira de fazer justiça nem história.

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