FOLHA DE S. PAULO – TENDÊNCIAS E DEBATES
Especialmente nas transições políticas de regimes autoritários para a democracia, tudo se procura apagar e esquecer.
Assim foi na transição do Estado Novo (1937-1945) para o regime constitucional de 1946. Sobre sequestros, tortura por agentes públicos, justiça de exceção, condenações sem defesa, nada foi feito até hoje em termos de resgate da memória ou de reparação das vítimas.
Diante desses horrores cumpre esquecer, assim propõem o ditador Getulio Vargas, que anistia todos os seus sequazes que cometeram aqueles crimes, e o líder comunista Prestes, que declara: "A anistia é o esquecimento, e eu, da minha parte, estou disposto a esquecer".
Destoando dessa celebração do esquecimento, no início da Assembleia Nacional Constituinte de 1946, o deputado Euclydes Figueiredo (pai do general-presidente João Batista Figueiredo) requereu a criação de uma comissão de inquérito que examinasse os crimes do Estado Novo.
Também pediu investigações no Departamento Federal de Segurança Pública, "no sentido de conhecer e denunciar à nação o tratamento dado aos prisioneiros políticos", afirmando que "a matéria não é daquelas que podem ser esquecidas.
Trata-se de fazer justiça, descobrir e apontar os responsáveis por crimes inomináveis, praticados com a responsabilidade do governo; e, mais que isso, defender nossos foros de povo civilizado".
Em 7 de maio de 1946, foi criada aquela comissão para examinar o período de 1934 a 1945, que poderia ter sido a primeira "comissão da verdade" no continente. Mas a falta de quorum fez com que a comissão encerrasse suas atividades sem conclusões.
Na transição do regime militar para a Nova República, em 1985, reaviva-se a mesma cantilena do esquecimento pregado para os "dois lados", visando particularmente livrar o aparelho de Estado envolvido em sequestros, desaparecimentos, tortura e mortes.
Mas, ao contrário do que ocorreu em 1946, houve o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelos crimes da ditadura, pela lei nº 9.140 de 1995, no governo FHC, que estabeleceu uma comissão que concedeu reparação aos desaparecidos políticos, por meio de indenização aos familiares.
A proposta de Comissão da Verdade encaminhada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Congresso conclui o círculo virtuoso iniciado com a lei nº 9.140, pois visa o esclarecimento circunstanciado e histórico daquelas práticas arbitrárias cometidas sob responsabilidade do Estado na ditadura militar, situando-as no contexto mais amplo de luta política do período.
A Comissão Nacional da Verdade, projeto de lei integralmente aprovado pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, não tem caráter revanchista nem mandato judicial ou persecutório, sendo falso afirmar, como tem sido alegado, que haverá réus sendo julgados.
O projeto acolhe o melhor da experiência de 40 comissões da verdade no mundo, como a composição transparente e pluralista dos membros, nomeados pela presidente da República, Dilma Rousseff, com plena legitimidade. Como ocorreu na Argentina, na Bolívia, no Chile e e no Peru, sem participação das partes em causa, vítimas ou agentes do Estado.
Quanto mais cedo o Congresso discutir e aprovar a Comissão da Verdade, melhores condições teremos de consolidar o passado em passado de verdade.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 67, é pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência (NEV/ USP). Foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso.
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