Comissão da Verdade: "Ninguém tem que chiar"
Por Paula Bonelli em 8/2/2011
Reproduzido da seção "Direto da Fonte" de O Estado de S.Paulo, 7/2/2011
Para quem trabalha com tema tão explosivo há tanto tempo, Paulo Sergio
Pinheiro exibe uma atitude surpreendentemente serena e até bem
humorada diante do potencial de crise que pode ser desencadeado com os
trabalhos da Comissão da Verdade. Um dos patronos do projeto de lei
que criará o órgão, o cientista político descarta clima de confronto:
"Eu não vejo nenhuma crise política, ninguém tem que chiar". Pinheiro
já escarafunchou crimes cometidos pela ditadura em Mianmar como
relator especial de direitos humanos para a ONU. Acha que o caso do
Brasil não é complicado, pois o projeto não prevê que a comissão possa
perseguir nem punir. Apenas informar e esclarecer as violações aos
direitos humanos ocorridas no regime militar. A seguir, os principais
trechos da entrevista.
***
O que a Comissão da Verdade vai poder ou não?
Paulo Sérgio Pinheiro – A Comissão da Verdade não poderá
responsabilizar criminalmente nenhum torturador. A rigor, o Brasil não
seguirá o caminho da Argentina, do Chile ou do Peru, países onde
vários generais e agentes do Estado, que torturaram e mataram, estão
em cana. A Lei de Anistia impede.
Quais seriam, então, os limites dessa revisão?
P.S.P. – Reconstituir efetivamente o que ocorreu. É preciso saber a
verdade sobre os crimes cometidos pelos agentes do Estado. O que
aconteceu com os dissidentes estamos cansados de saber.
Quais garantias a sociedade tem de que um ciclo de vinganças não se iniciará?
P.S.P. – Isso é paranoia imobilizadora. Ódio você não enterra com
desconhecimento. A verdade é que esses torturadores são poucas
centenas, um bandinho de criminosos nas Forças Armadas, na Polícia
Militar e na Civil. A maioria esmagadora não está manchada de sangue.
Não é possível que eles permaneçam com as suas promoções e pensões e
tudo continue escondido. O cientista político italiano Norberto Bobbio
diz que a luz do sol contribui para a melhoria das relações da
sociedade.
Sabe dizer se há pesquisas que vão neste sentido?
P.S.P. – Sim. As pesquisas mostram que nos países onde houve comissões
da verdade as democracias tornaram-se muito mais eficientes, os crimes
contra os direitos humanos diminuíram e se tortura muito menos. No
Brasil, os torturadores atuais continuam torturando, apesar de ser
crime. Eles acham que está tudo numa boa, que não acontecerá nada.
E quais serão os poderes da comissão?
P.S.P. – No projeto, ela tem acesso a qualquer arquivo que exista. E
só tem graça se for assim. Também tem a faculdade de convocar quem
quiser, não pode obrigar, mas pode tornar público que as pessoas estão
se recusando a vir. E a comissão não é obrigada a publicar tudo que
descobrir. Uma opção, por exemplo, é fazer uma lista de nomes de
torturadores e dar para a presidenta da República e para o ministro da
Defesa.
Acha que é mais justo divulgar o nome dos generais ou é mais prudente guardar?
P.S.P. – Não sei. No caso brasileiro, quem torturava era gente miúda,
não era general. Era tarefa delegada para a tropa. O Chile nunca
publicou os nomes, a Argentina publicou. A comissão pode decidir que
os nomes não sejam publicados nos casos mais revoltantes, por exemplo.
Quais serão os líderes da Comissão da Verdade?
P.S.P. – A líder é a presidente da República. Compete a ela escolher
sete membros. Tem gente nervosa porque não haverá representantes das
Forças Armadas. Isso é bobagem porque nas 40 comissões da verdade que
já houve no mundo, desde a década de 80, não teve representante nem
das Forças Armadas, nem das vítimas. E também não pode ter dos
partidos. Não dá para generais ou soldados ficarem reclamando da
presidente, que é inclusive a comandante em chefe das Forças Armadas.
Seria falha grave de hierarquia.
O general José Elito declarou que os desaparecidos políticos durante a
ditadura não são motivo de vergonha para o País. Deveria ser demitido?
P.S.P. – Eu não sou a chefe dele. O que aconteceu é que quando você é
nomeado ministro, e isso também ocorreu comigo, você fica muito
exuberante, falando demais. Ele falou um pouquinho demais. As Forças
Armadas brasileiras não compartilham dessa preocupação, elas têm sido
um exemplo de respeito à legalidade institucional.
Por que existe resistência à abertura dos arquivos?
P.S.P. – Talvez oficiais da reserva tenham solidariedade, talvez
exista esse sentimento no ar, pelo que ouvi falar. Mas as Forças
Armadas têm estado mudas, como devem estar, e totalmente respeitosas à
presidente da República.
No discurso de posse, Dilma homenageou os que tombaram, os companheiros de luta.
P.S.P. – Achei correto ela se solidarizar. Houve centenas de jovens
que foram torturados e sequestrados pela ditadura. Ela não tem nada a
esconder, quem tem o que esconder são os torturadores.
Então, a anistia foi um erro?
P.S.P. – Para o Conselho de Direitos Humanos da ONU, a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da OEA, a Corte Interamericana de
Direitos Humanos e a Corte Europeia de Direitos Humanos as
autoanistias presenteadas pelos regimes sucessores das ditaduras não
são válidas. A anistia é problemática. Os crimes do Estado não podem
ser anistiados. Essa é a tese básica do direito internacional. Aqui no
Brasil isso está resolvido pelo Supremo. É coisa julgada, não me cabe
ficar discutindo, sendo eu membro brasileiro da Comissão
Interamericana, pois a corte deu sentença recentemente condenando a
anistia brasileira.
Você acha que para o governo Dilma é politicamente conveniente reabrir
esse tema?
P.S.P. – Acho que conveniência não é a palavra adequada. A tarefa da
presidente está facilitada não só pela sua biografia, mas pelos passos
que deram os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula. São 16 anos
de ações acumuladas para nos aproximarmos da Comissão da Verdade. Eu
não vejo nenhuma crise política, ninguém tem que chiar. O Nelson Jobim
aprovou todo o projeto. O Estado brasileiro tem essa obrigação perante
a comunidade internacional.
Você acha que por Dilma ter sido guerrilheira complica ou facilita as
investigações dos crimes da ditadura?
P.S.P. – É claro que o fato de a presidente ter tido essa experiência
concreta é um fator importante na sua memória, na sua personalidade.
Mas em termos da situação política é irrelevante. Está zerado para
quem participou da luta armada e para os torturadores, conforme a Lei
de Anistia, confirmada pela decisão do Supremo no ano passado.
Ela pode ser encarada como revanchista e não a líder suprema do País?
P.S.P. – Isso é conversa para boi dormir. Um presidente da República
não pode pretender fazer revanche. Os familiares querem a verdade dos
fatos, não revanche. Eles não puderam enterrar os seus parentes.
E quais seriam os prejuízos de não se instituir a comissão?
P.S.P. – Vamos continuar na rabeira, com esse débito absurdo com os
familiares dos desaparecidos, o que é incompatível com a democracia. É
constrangedor o Brasil, uma potência emergente global, ainda ter que
ficar fazendo de conta que não houve tortura, de que ninguém sabe
exatamente o que aconteceu. Isso pega mal na comunidade internacional.
Nós, que afirmamos ser essa democracia vibrante, na verdade somos
ainda subdesenvolvidos em termos da verdade histórica.
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