quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Darcy Ribeiro e as perguntas que nunca fiz (Eric Nepomuceno)






Darcy Ribeiro e as perguntas que nunca fiz

O texto a seguir emocionou as 200 pessoas que participaram do lançamento da  coleção Darcy de Bolso. Foi lido por seu autor, Eric Nepomuceno, jornalista,  escritor e grande amigo de Darcy 
Eric Nepomuceno -



Nunca perguntei a Darcy Ribeiro se ele costumava cochilar, mas posso  assegurar que não. Mesmo breves, seus sonhos seriam profundos. Porque profundos e infinitos em sua ousadia foram seus sonhos. E não se sonha  grande com cochilos leves.

Darcy não sonhou pequeno, nunca. E também não se limitou a sonhar um mundo  melhor, mais justo e possível. Não ficou nos sonhos, jamais.

Foi à vida, foi ao mundo, para torná-los realidade. Conseguiu, algumas vezes. Fracassou em outras. Disse , muitas e muitas vezes, que sentia orgulho de ter sido derrotado lutando pelo que lutou, do que jamais conseguiria  sentir se estivesse ao lado dos vencedores.

Nunca perguntei a Darcy se ele gostava de contas redondas. Volta e meia  penso nisso, quando recordo que por poucos meses ele não chegou aos 75 anos  de idade. Nasceu em outubro, morreu em fevereiro.

Nove meses separaram Darcy dos 75 anos completos. Curioso isso: nove meses.  Uma gestação.

Às vezes o que mais me impressionava é a quantidade de coisas que Darcy  Ribeiro fez e foi, e aí me parece curto demais o tempo que lhe foi dado para  viver.

Em seus quase 75 anos de vida ele foi ministro da Educação, ministro-chefe  da Casa Civil, vice-governador do Rio de Janeiro, secretário da Cultura do  Rio de Janeiro, secretário de Desenvolvimento Social de Minas Gerais. Foi, até o fim, senador da República. E ele, que se dizia e se sabia eterno,  conseguiu ainda a proeza de morrer imortal – porque também teve tempo de  sacudir o chão da Academia
 Brasileira de Letras.

Escreveu romances, ensaios antropológicos, ensaios sobre educação, análises  críticas da história do Brasil e da América Latina.

Só de artigos, conferências, palestras e ensaios que nunca foram reunidos em  livro, há mais de uma centena.

Seus livros de antropologia, principalmente O Processo Civilizatório, As  Américas e a Civilização, e acima de todos O Dilema da América Latina  fizeram de Darcy Ribeiro, ao lado de Celso Furtado, o intelectual brasileiro  mais respeitado e influente na América Latina da segunda metade do século  XX.

Formaram gerações de intelectuais e acadêmicos do continente.

Escreveu histórias infantis e poemas eróticos. Foi indigenista, antropólogo,  agitador, romancista, conspirador, mas gostava mesmo é de ser chamado de  educador – coisa, aliás, que também foi.

Morreu senador. Darcy Ribeiro adorava ser senador da República.

Nunca perguntei a Darcy Ribeiro qual o fascínio que provocava nele o linho  branco. Aquele mesmo linho que meu avô José Augusto usava e dizia ter  mandado trazer do Panamá, linho 120.

Lembro que no dia em que foi eleito senador, Darcy Ribeiro vestiu um terno  branco, de linho formidável, e ficou andando pela sala de seu apartamento em  Copacabana, vendo o mar e falando sem parar.

Estava descalço.

Não consigo tirar da memória essa imagem: Darcy, em casa, em qualquer uma  das muitas casas que teve pela vida e pelo mundo, sempre descalço.

Dizia que era por causa de seu sangue índio. Até hoje desconfio que na  verdade ele andava descalço para sentir os pés no chão.

 Naquele tempo, Chico Buarque ainda não havia escrito o verso que diz "é  preciso pôr o chão nos pés".

Para mim, aquele andar descalço de Darcy de um lado a outro era mais ou menos a antecipação da imagem que Chico criaria anos depois, sem saber  disso.

Nunca perguntei a Darcy Ribeiro se ele se considerava um intelectual  peculiar. Não perguntei nem precisei perguntar: evidentemente Darcy era  peculiar em tudo que fez, e sabia disso.

Jamais se recolheu aos claustros acadêmicos ou da burocracia oficial para de lá ficar olhando a vida ao longe, a realidade transformada em números e estatísticas, a vida como objeto de análise fria, calculada, distante, indolor.

Não: Darcy Ribeiro mergulhou fundo, participou de todas as maneiras que pôde da vida política deste país. E quando foi impedido de continuar participando aqui, engajou-se nos países por onde passou o exílio. No Uruguai, no Chile de Allende, no Peru, ao lado do general Velasco Alvarado, nas suas andanças  pela Costa Rica, pelo México, pela Venezuela, Darcy Ribeiro não sossegou um  só instante.

Não, não era homem de cochilos e sonos leves: sonhava grande.

Jamais foi homem de ficar na superfície. Acreditava no poder transformador  da realidade. Acreditava na indignação.

Seu compromisso básico, o mais perene, chamava-se Brasil. Quis mudar a  educação, criando escolas de qualidade para todos; quis salvar os índios,  preservando suas culturas e protegendo suas terras; quis mudar a estrutura  social que beneficia alguns às custas de todos os outros.

Perdeu.

Num de seus textos mais contundentes, lido quando ele recebeu o título de  doutor honoris causa na Sorbonne, em 1978 – foi, aliás o primeiro brasileiro  a receber essa honraria, e na época não gozava das glórias de nenhum cargo  público ou as benesses das embaixadas: estava exilado – Darcy Ribeiro falou  dessas perdas, dessas derrotas. Dizia ele:

*Fracassei como antropólogo no propósito mais generoso que me propus: salvar  os índios do Brasil. Sim, simplesmente salvá-los.*

*Fracassei também na realização da minha principal meta como ministro da escolarizar todas as crianças brasileiras.*

*Fracassei, por igual, nos dois objetivos maiores que me propus como  político e como homem de governo: realizar a reforma agrária e pôr sob  controle do Estado o capital estrangeiro de caráter mais aventureiro e  amoral.*

Terminou dizendo que "esses fracassos da minha vida inteira" eram também "os  únicos orgulhos que tenho".

Anos mais tarde, um dos intelectuais latinoamericanos que ele mais  influenciou, o escritor uruguaio Eduardo Galeano, escreveu:

"Estes são os seus fracassos. Estas são as suas dignidades".

No mundo destes tempos de culto ao individualismo, em que a ânsia de ter  supera o sonho de ser, em que a generosidade é restrita às coisas e não se  refere às pessoas, mais que nunca as dignidades de Darcy Ribeiro são  necessárias. Tão desesperadamente necessárias.

Nunca perguntei a Darcy quais eram suas urgências, suas emergências além de  viver até a última gota, é claro.

Porque Darcy era um homem de urgências permanentes, de emergências que se  alongavam no tempo. Tinham raízes profundas. Eram perenes. Uma espécie de  emergência contínua, num renovar incessante.

Havia, em sua maneira de olhar e pensar o Brasil, a América Latina e o  mundo, um eixo nítido: o fato de não estarmos condenados a ser o que somos,  a certeza de que não somos vítimas de um destino malvado, e sim de um  sistema perverso.

O trabalho de Darcy Ribeiro – os sonhos que ele quis transformar em  realidade – estava e está destinado a soprar o fogo dessa brasa adormecida,  a incendiar a mansidão dos derrotados, a provar que somos sempre e acima de  tudo um povo viável, digno de uma outra – e nova – realidade.

Para ele, o Brasil era um problema que só teria e só terá solução a partir  de nós mesmos, de nossa capacidade de impulsionar e consolidar mudanças.

Nunca perguntei a Darcy Ribeiro se ele tinha idéia, por menor que fosse, do  impacto que algumas das imagens que guardaria dele para sempre provocaram em  mim. Convivemos lado a lado, não importando as distâncias, ao longo de 22  anos. E desse tempo todo, lembro agora de duas imagens, e de pelo menos uma  certeza.

A certeza:

Foi o único amigo que nasceu no mesmo ano de meu pai e conseguiu ser, até o  fim, mais jovem que meu filho.

Dele, ouvi certa vez uma frase que mudou minha vida e assim ficou. Dizia  Darcy: "Na América Latina, só temos duas saídas: ser resignados, ou ser  indignados. E eu não vou me resignar nunca."

A primeira imagem que guardo para sempre:

Alta noite do dia 31 de dezembro de 1995, e Darcy Ribeiro estava sentado na  varanda do seu apartamento na Avenida Atlântica. Olhava a multidão espalhada  pela praia e pelo asfalto e pelas calçadas da avenida. Das alturas daquele  quinto andar, ele contemplava tudo com olhos de piloto atento, percorrendo  as pessoas, as ondas do mar oceano, as embarcações iluminadas.

Quando faltava pouco para a virada do ano – a penúltima que ele iria ver –  duas amigas chegaram na varanda, aproximaram-se da cadeira em que ele estava  sentado e colocaram no chão um grande balde prateado, um desses baldes que  são usados para esfriar garrafas de vinho.

No balde havia água do mar e areia da praia.

Quando viu o foguetório da meia-noite e do ano que se iniciava, ele  mergulhou os pés no balde.

Darcy, naquela noite, adoentado – e muito – não podia ir até o mar. Pois deu  um jeito de trazer o mar até ele. Até seus pés descalços. De pôr enfim o  mar, a areia, o chão nos pés.

Assim quero me lembrar dele para sempre. Também assim.

A segunda imagem:

Certo fim de tarde de um sábado, poucos meses antes de nos deixar para  sempre, ele saiu do escritório de Oscar Niemeyer, naquela mesma Avenida  Atlântica.

Vestia um terno branco, e foi caminhando devagar pela calçada até o  automóvel que esperava por ele.

Do mar, vinha uma brisa cálida. Visto lá do alto, o paletó branco  esvoaçando, caminhando devagar, Darcy Ribeiro parecia um veleiro desafiando  os ventos, rumo a um futuro – um porto – que só ele poderia adivinhar.

Guardo essa imagem e a certeza de que o porto, aquele porto, é preciso  agora, mais do que nunca, merecê-lo.

Porque desta vez Darcy não perdeu, não foi derrotado.

Mudou de rumo.

E aonde quer que esteja, continua como sempre: indignado. E descalço.

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