'Complexidade não é desculpa para falta de ação'
Lis Horta Moriconi
Criado em 13/12/2007 - 23:00
"Eu não vejo meu papel no Brasil como responsável por expor execuções ou faltas cometidas pelo sistema que já não sejam conhecidas. O que posso fazer é analisar sistematicamente as diversas questões extrajudiciais relacionadas às execuções e propor reformas concretas". A afirmação é do relator especial das Nações Unidas para execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, Philip Alston, em entrevista ao Comunidade Segura.
O professor da Escola de Direito da Universidade de Nova York esteve no Brasil em novembro, para preparar um relatório sobre violações dos direitos humanos e mortes extrajudiciais no país. Durante a visita, que durou 11 dias, Alston esteve no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Brasília
Encorajado pelos resultados da visita feita pela relatora Asma Jahangir em 2003, Alston apontou questões que requerem ações urgentes como as operações policiais em larga escala, o crescimento das milícias e a crise ocorrida em maio em São Paulo, quando 52 pessoas morream durante ataques [1] atribuídos a uma facção criminosa.
Para Alston, Existem coisas que simplesmente têm que acabar como os autos de resistência, o "bico" - trabalho realizado pelos policiais nos horários de folga -, a classificação dos condenados de acordo com a facção a que pertencem. E outras que têm que acontecer como o Ministério Público ter o poder efetivo de investigar.
Mas, segundo o professor australiano, nada disso será possível se as reformas propostas no relatório não contarem com o apoio de atores-chave da sociedade brasileira. A mídia, por exemplo, exerce um papel importante e a complexidade dos problemas não pode ser desculpa para a falta de ação.
Qual repercussão o senhor espera que a divulgação da versão preliminar do relatório terá?
Idealmente, a minha visita e o relatório final servirão como catalizadores para mudanças na polícia, na administração prisional e na justiça criminal no Brasil. Os principais atores - polícia, políticos, promotores e defensores públicos, juízes, ouvidores e a sociedade civil - estão mais do que conscientes dos problemas relacionados às execuções no país. A minha principal tarefa é estimular iniciativas para reformas e colocar foco no debate sobre reformas que atinjam em cheio essa questão.
Na sua opinião, quais são os casos mais graves de violações dos direitos humanos no Brasil?
O Brasil tem uma das taxas de homicídio mais altas do mundo e poucos criminosos são levados a julgamento. Uma parte significativa dos homicídios são cometidos pela própria polícia e poucos casos são investigados ou processados adequadamente. Uma parcela inaceitável da população carcerária no Brasil é morta na prisão. Além disso, existem alegações persistentes de que índios e trabalhadores sem-terra estão sendo mortos por matadores contratados como forma de "resolver" problemas de disputa de terra.
Em seu relatório o senhor expõe esses problemas, então?
Como esses problemas são familiares aos brasileiros, eu não vejo meu papel no Brasil como responsável por expor execuções ou faltas no sistema que já não sejam conhecidas. O meu papel é analisar sistematicamente as diversas questões extrajudiciais relacionadas às execuções e propor reformas concretas.
A sua visita está de alguma forma relacionada com o relatório de 2003 elaborado por Asma Jahangir?
A minha visita ao Brasil foi, com certeza, estimulada pela dela. Eu me senti encorajado quando entendi que alguns atores no Brasil vêm tentando implementar e monitorar a implementação das recomendações que a Asma fez.
Houve, no entanto, algumas mudanças desde a visita dela. Por exemplo, o uso em larga escala das operações policiais e o crescimento das milícias no Rio de Janeiro; mudanças na abordagem do policiamento e o surgimento dos esquadrões da morte em Pernambuco além da crise de violência que ocorreu em São Paulo em 2006. Eu espero que este segundo relatório ajude a aumentar os esforços no Brasil para reduzir a ocorrência dessas execuções.
Existe um modelo de alcance no monitoramento dos direitos humanos que nós, brasileiros, devemos ter em mente?
Talvez um exemplo responderá melhor a esta pergunta. Esta semana eu recebi a notícia de que o número de assassinatos extrajudiciais nas Filipinas pelas forças estatais caiu de 209 no ano passado, para 68 este ano. Esta dramática redução foi atribuída à pressão internacional, incluindo a resultante da minha visita em fevereiro deste ano. Passou a ser impossível para as autoridades filipinas continuar negando seu papel na execução de ativistas de esquerda.
Um relatório como o seu pode mudar os rumos dos direitos humanos de um país?
O que este exemplo indica é que um relatório imparcial, focado, cuidadoso e abrangente, feito por órgãos internacionais pode realmente trazer à tona os eventos internos de um país e estimular o tipo de pressão que pode alterar dramática e positivamente o comportamento do Estado. No fim das contas, no entanto, este processo só vai funcionar se as recomendações forem ao encontro da vontade de atores internos, incluindo a sociedade civil, que queiram mudar as coisas.
Qual é o papel da mídia nesse contexto?
A mídia pode exercer um papel crucial ao expor as violações aos direitos humanos e ao solidificar a opinião pública. No Brasil, por exemplo, depois que os incidentes envolvendo as execuções passaram a ter uma maior cobertura da imprensa, houve um aumento das reclamações feitas à ouvidoria da polícia. Os indivíduos se sentem empoderados a relatar os crimes e abusos.
Diz-se que a mídia é o quarto poder capaz de funcionar como um observatório dos abusos perpetrados pelo governo e pela polícia. Existem muitos jornalistas comprometidos e muitos fazem isto colocando em risco sua própria integridade física. Os jornalistas que trabalham na mídia brasileira têm exercido papel fundamental em mostrar os abusos aos direitos humanos e isto só pode ser bom. Chamar a atenção para esses abusos é o primeiro passo na direção da sua redução e prevenção.
Qual das recomendações é a mais fácil de ser aplicada e mais eficaz?
As recomendações têm que ser aplicadas em conjunto. Uma mudança apenas não vai alterar de forma significativa o sistema e reduzir as execuções. As causas são diversas, portanto, as recomendações também têm que ser. A idéia de que existe uma forma rápida de consertar as coisas ou de que existe apenas uma solução acaba sendo parte do problema.
Poderia explicar melhor?
As pessoas acham que se não conseguirem resolver o problema imediatamente, com apenas uma reforma legal, por exemplo, é porque o problema é muito grande e complexo e não planejam ações de longo prazo. A complexidade não pode ser usada como desculpa para a falta de ação.
Quais as mudanças apontadas no seu relatório o senhor elegeria como mais urgentes?
Existem várias reformas que eu acredito que podem ser implementadas já ou em um futuro próximo e que direcionariam a questão das execuções. O poder de o Ministério Público de investigar casos em que a polícia estiver envolvida deve ser reafirmada ou esclarecida. A figura dos autos de resistência - expressão usada para caracterizar a morte de civis pela polícia - garante virtualmente a licença para a polícia matar e deve ser abolida. Os oficiais não podem tolerar também o trabalho ilegal dos policiais nos horários de folga. A ouvidoria de polícia deve ser um órgão independente e ter poder real. Por fim, deve acabar o costume de identificar presos pela facção a que pertencem.
O aumento da disponibilidade de armas de fogo e munição mudou o perfil dos conflitos nos últimos 30 anos. O senhor acha que esse novo poder de fogo é responsável pelos problemas de violações dos direitos humanos no Brasil?
Eu não vejo o aumento do acesso às armas como responsável por novos tipos de abusos dos direitos humanos. O que este fenômeno pode provocar é o aumento da gravidade e da complexidade dos problemas. O Brasil tem uma taxa de homicídios comparável a países em guerra civil e 70% dessas mortes são causadas por armas de fogo. Com certeza deve haver um controle maior dessas armas tanto internacionalmente quanto internamente.
O senhor mencionou que mesmo os oficiais com quem conversou achavam que se referir à situação no Brasil como guerra seria improdutivo. Qual a sua opinião levando em conta que o estilo repressivo parece estar aumentando?
Os estudos sobre crimes no mundo mostram que a América Latina tem, regionalmente, um dos mais significativos níveis de crescimento da criminalidade. Somos familiares à abordagem "lei e ordem" a qual os políticos em todo o mundo sabem que dá a aparência de ação contra o crime. Não surpreende que políticos como estes sejam eleitos. Mas a questão básica é que criminalidade não é guerra e as políticas de "lei e ordem" devem ser baseadas no respeito aos direitos humanos.
Tradução: Shelley de Botton