sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Editorial - Um estupro sem fim no Pará

JORNAL DO BRASIL



Num desfile ininterrupto de descaso, preconceito e desrespeito às leis, o estupro de L., 15 anos - durante 26 dias jogada à volúpia sexual de 20 detentos na cadeia pública de Abaetetuba, no Pará - está longe do desfecho. O crime abateu a opinião pública, repercutiu além-fronteiras e ganhou dimensões amazônicas protagonizado por uma coleção de mulheres. Encarregadas de prender criminosos, punir judicialmente, investigar a ação dos policiais envolvidos e de governar o Estado, formaram um exército de aguerridas patrocinadoras de atos lesivos ao decoro, à moral, aos bons costumes e à ética pública.



Suspeita de roubo, abandonada pela família, L. foi jogada ao covil de testeronas-feras em ebulição por determinação da delegada Flávia Verônica. O pueril argumento de que não há celas exclusivas para representantes do sexo feminino na maioria das cadeias do Pará não se justifica. Mas foi suficiente para convencer a juíza Clarice Andrade a perpetuar a bestialidade contra L. Para se alimentar, era obrigada a saciar o apetite sexual de variados parceiros.



Vilipendiada e bestializada, sobreviveu graças ao Conselho Tutelar de Abaetetuba, que denunciou o caso ao Ministério Público. A tortura moral contra a jovem, contudo, estava apenas começando. Ela foi largada pelos policiais envolvidos na prisão bem longe dali. Depois, foi acusada pelo delegado-geral Raimundo Benassuly de debilidade mental.



O chefão foi destronado pela governadora petista Ana Júlia Carepa que, longe de assumir responsabilidade pela agonia de L., jogou nos antecessores a culpa pela falta de presídios para abrigar criminosas, ou acusadas, no Estado. E só então correu atrás de recursos em Brasília para cobrir a própria inoperância administrativa.



Os responsáveis pelo conjunto oceânico de ilegalidades, porém, caminham para a absolvição. Em entrevista ontem ao jornal Folha de S. Paulo, a corregedora-geral do Pará, delegada Liane Martins, afirmou não ter como demitir nenhum policial, porque "eles foram levados ao erro", pela menor - que, na versão ensaiada por todos, afirmou ter 19 anos.



Como os agentes policiais são "pessoas que têm formação", e a adolescente L. não passou tempo suficiente na escola para aprender a soletrar o próprio nome, a responsável por investigar a participação dos servidores públicos no notável volume de abusos legais acredita que "eles não estejam mentindo". Desabusada, a corregadora admite apenas que os tais policiais possam ter sido negligentes. E ainda repete o deslize do ex-delegado-geral, sugerindo, nas entrelinhas, que a menor seja portadora de deficiência mental.




Se a encarregada de limpar a Polícia do Pará dos maus profissionais se alia à versão indecorosa da culpabilidade da menina, o desembargador Constantino Guerreiro, corregedor das Comarcas do Interior do Pará, cumpriu sua tarefa. Afastou a juíza Clarice e dois auxiliares do cargo e abriu processo administrativo-disciplinar contra o trio - alteraram a data do pedido de transferência de L. para ludibriar o Tribunal de Justiça do Estado.



L. entrou para o programa de proteção à testemunha. Mas o crime contra ela ganha gravidade não por se tratar de uma questão de gênero, embora envolva uma mulher estuprada e quatro outras, no mínimo, insensíveis. Expõe a fragilidade do Estado, incapaz de resolver suas pendências em relação à segurança pública. Até quando?

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